O mundo dos outros

'Perestroikas'

19 maio 2009 8:00

19 maio 2009 8:00

Nos anos 80 do século passado Gorbatchov anunciou a perestroika (isto é, a reestruturação económica) para reformar o comunismo - porque gostava de ordem e não percebera que o comunismo não era reformável. Ieltsin, que gostava de liberdade e tinha percebido que a reforma era impossível, derrubou Gorbatchov, liquidou de cima para baixo a União Soviética e, acolitado por Iegor Gaidar, deu cabo da economia planificada, lançou a economia de mercado e a democracia política, inventando assim a versão contemporânea da Rússia eterna.

Tudo tem custos e passar, de um dia para o outro, de uma dieta de Lenine para uma dieta de Hayek desafiaria os organismos mais robustos. A Rússia ainda não se recompôs dessa transição súbita, das privatizações corruptas, da ganância dos oligarcas e da inépcia empresarial do resto, do assalto metódico ao poder pelos sucessores do KGB, com o mal-estar agravado ultimamente pela queda dos preços do petróleo e do gás.

Estou em que a pouco e pouco irá ao sítio, mas ao seu sítio - versão do capitalismo que não será necessariamente idêntica aos modelos ocidentais que inspiraram Ieltsin e Gaidar mas onde, pelo menos, os governantes tenham ganho o hábito de prestar contas aos governados, vigore alguma decência cívica e vizinhos frágeis - Bálticos, Ucrânia, Geórgia - possam passar a dormir sem o Credo na boca.

Duas décadas depois de Gorbatchov querer compor o comunismo em Moscovo, Barack Obama herdou em Washington crise do capitalismo de gravidade inédita na experiência dos seus compatriotas; práticas oficiais ofensivas dos direitos humanos de que os Estados Unidos se honram de ser garantes (Abu Ghraib, prisões da CIA, tortura, escutas); prestígio e credibilidade americanos no estrangeiro pelas ruas da amargura e os grandes novos poderes acotovelando-se para, nos banquetes do mundo, passarem da mesa dos criados para a mesa dos patrões.

Por outro lado, não me lembro de chefe político que tenha chegado ao poder na crista de tão grande onda de esperança universal. Gorbatchov quando apareceu também entusiasmou, mas sobretudo os chefes políticos ocidentais. Numa cimeira da NATO em Bruxelas os elogios que lhe foram feitos por Thatcher, Reagan, Kohl e outros foram tais que Mitterrand quando chegou a sua vez, suspirou: "Então, meus senhores, então! Não é bem o Gandhi..." (Mitterrand era cool, como se diz agora).

Tal como Gorbatchov, Obama quer reformar o sistema que herdou e tem a sorte do seu sistema ser eminentemente reformável. A parte da esquerda europeia que, desde a falência do Lehman Brothers, julga assistir ao fim do capitalismo e tira os amanhãs que cantam do baú onde os arrumara depois do colapso da URSS, engana-se mais uma vez.

Os Estados Unidos vão recuperar antes do resto do mundo e (com a China) sairão mais fortes da crise. Os europeus, se tiverem juízo, não se atrasarão muito. Se não tiverem, continuarão a enfraquecer-se uns contra os outros em vez de se reforçarem juntos contra o mundo.

José Cutileiro