Luís Fernando Veríssimo

Poetas

17 março 2010 0:00

Luís Fernando Veríssimo (www.expresso.pt)

17 março 2010 0:00

Luís Fernando Veríssimo (www.expresso.pt)

No começo do século passado, num dos seus primeiros poemas publicados - "A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock" -, T.S. Eliot escreveu:

"Vamos, então, você e eu,

Quando a noite estiver estendida contra o céu

Como um paciente anestesiado numa mesa..."

A noite comparada a um paciente estendido numa mesa! Alguma coisa estava sendo inaugurada na poesia com o símile surpreendente. Uma nova liberdade. As comparações não precisavam mais ser exactas - nada numa noite estendida contra o céu lembra um corpo estendido sobre uma mesa. Os símiles estavam livres para serem insólitos, quanto mais insólitos melhor. Não seria exagero dizer que Eliot deve a sua notoriedade instantânea a este início revolucionário. No resto do poema há comparações perfeitamente apropriadas. "A neblina amarela que esfrega as costas nas vidraças" e mete a sua língua nos cantos da noite lembra um gato, por exemplo. Mas foi o paciente anestesiado que alvoroçou o pessoal.

Muitos anos mais tarde, outro poeta fez coisa parecida. Mas quando o Aldir Blanc escreveu que a tarde caía feito um viaduto não estava sendo tão abstracto quanto Eliot. Na época em que escreveu "O Bêbado e a Equilibrista" com o João Bosco, a queda daquele viaduto no Rio - pela qual, claro, ninguém nunca foi culpado - era coisa recente. A tarde cadente lembrando um viaduto desmoronando do Aldir estava num contexto real, o céu lembrando um corpo do Eliot num contexto puramente poético. Mas em matéria de símiles insólitos deu empate.

Está no mesmo poema do "Prufrock" a segunda imagem mais lembrada de Eliot:

"I should have been a pair of ragged claws

Scuttling across the floors of silent seas."

"Eu deveria ter sido um par de garras serrilhadas

Escapulindo pelo chão de mares silenciosos."

(Não sei como os tradutores de Eliot para o português traduziram "scuttling". Preferi "escapulindo", que é inexacto mas dá a ideia do movimento rápido daquelas garras pelo fundo do mar. "Perfurando o chão de mares silenciosos" é mais inexacto ainda, mas talvez desse uma ideia melhor. Perfeito, mesmo, é o "scuttling" do original. Seja qual for a sua tradução correcta.)

Para o caso de ser necessário um desempate entre os poetas, qual seria o equivalente em Eliot da ponta torturante de um "band-aid" no calcanhar do Blanc, "the excrutiating tip of a band-aid in her ankle"? Suspeita-se que não existam "band-aids" espiando da borda de sapatos altos no universo de Eliot, que era um falso inglês. Dizem que os falsos são os mais ingleses de todos.

Silêncio

De um poema de W.B. Yeats sobre a véspera de uma batalha:

"Nosso mestre César está na tenda

Onde se estudam os mapas.

Seus olhos fixados em nada,

Uma das mãos sob a cabeça.

Como uma mosca de pernas longas num riacho,

Sua mente se desloca sobre o silêncio."

Não sei porquê, gostei da imagem. A mente de César se movendo sobre o silêncio como uma mosca na superfície da água. O silêncio como conselheiro, estrategista e tranquilizador. A única coisa a ser ouvida antes de uma batalha e percorrido como um riacho. Que batalha era, e qual foi o seu resultado, o poeta não especifica.

Frases

Uma vez inventei uma epígrafe para um romance, "todo o desejo é um desejo de morte", e identifiquei a frase como possível adágio japonês. Descobri depois que Nietzsche tinha escrito "alle Lust will Ewigkeit", "todo o desejo busca a eternidade", num poema. A semelhança não é suficiente para justificar uma acusação de pré-plágio a Nietzsche, mas gostei de descobri-la. A minha frase não queria dizer nada. A do Nietzsche é profundíssima.

Texto publicado na edição do Actual de13 de Março de 2010