José Manuel dos Santos

Passagem

7 janeiro 2011 0:00

José Manuel dos Santos (www.expresso.pt)

7 janeiro 2011 0:00

José Manuel dos Santos (www.expresso.pt)

O tempo só nos diz se o dissermos. Por isso, a cada ano que acaba, damos uma palavra que o diga, para com ela nos dizermos também. Aqui e em muitos outros lugares, caem sobre 2010 as palavras de um dicionário que apenas as tivesse amargas ou assustadoras. Essas sabemo-las de cor, porque, ultimamente, as temos ouvido em todos os momentos e as temos lido em todos os títulos.

Uma revista francesa pediu a escritores para escolherem palavras que fossem o nome deste ano que finda. Cada um, escolheu uma: crise, dívida, gerir, excesso, invisível (para apontar o que se quer esconder), identidade (francesa, claro), limpeza (étnica, por causa da expulsão dos roms) e ainda os nomes de gente que esteve no centro de acontecimentos e escândalos (o "affaire Bettencourt", por exemplo). Em Portugal, se fizéssemos a mesma pergunta, algumas palavras seriam as mesmas. Outras seriam diferentes: juros, rating, cortes, défice, desemprego, desigualdade, pobreza, chuva, euro, FMI, BPN, Rosalina Ribeiro. E, agora, em todo o mundo, a palavra mais repetida é WikiLeaks e, com ela, vem Assange. Sabemos que estas são palavras de passe a levar-nos de 2010 para 2011.

Nestes dias, oiço o que se exclama sobre o ano que termina, e a palavra mais ouvida é dita para com ela se dizer tudo o que nos afasta da felicidade ou da ilusão dela: "merda". "Foi um ano de merda!", afirma-se. "Que merda de vida!", protesta-se. "Merda para isto", repete-se. "São todos a mesma merda!", lamenta-se. "Merda" é uma palavra que dá sorte no teatro. Segreda-se aos atores, em noites de estreia, desejando-lhes palmas em vez de pateadas. Fora dessas salas onde nos vemos nos outros a fazer de outros, a mesma palavra não é de sorte ou de êxito que fala - é de azar e de fracasso. Na política ou na economia, no trabalho ou em casa, dizemos "merda" para dizer que 2010 foi um ano para esquecer - e, por isso mesmo, não o esquecemos.

Eu olho os dias deste ano e também exclamo: "Que merda!" Isso aqui fui escrevendo, mesmo sem escrever a palavra que alguns chamam "mot de Cambronne", do nome do general de Napoleão que, na batalha de Waterloo, quando o general britânico Colville lhe ordenou que se rendesse, mandou-o à merda. Por isso, ficou na história. Às vezes, mandar alguém à merda pode ser a última forma de heroísmo...

Quando digo "este foi um ano de merda", não digo tudo o que o ano foi. Olho para trás e vejo que, às vezes, uma luz atravessou a sombra. Nesta passagem do tempo, trago aqui essa luz, fazendo dela um bom augúrio. Trago essa luz da luz que, numa tarde fria, vi acender-se, entre o céu cinzento e o rio triste, mudando a cor ao mundo. Trago-a das palavras ditas pela voz de uma mulher: "Sou velha, mas estou viva." Trago-a do grito gritado contra a prepotência ávida: "Estes gajos pensam que são nossos donos, mas não são!" Trago-a dos versos de Jaime Gil de Biedma, tornados meus numa tarde de verão: "No jardim, lendo,/ a sombra da casa obscurece-me as páginas/ e o frio repentino de final de agosto/ faz que pense em ti." Trago-a da mão que me tocou com uma lentidão próxima do desejo. Trago-a da terceira sinfonia de Górecki, morto este ano, ou da oitava sinfonia de Mahler, cantada por Lucia Popp. Trago-a do sorriso que sorriu no rosto de um desconhecido quando, numa rua cheia de gente, íamos chocando. Trago-a de um pensamento de Levinas, lido numa manhã ainda não passada, e que é uma condenação do mundo de hoje: "Depois de ti": "Esta fórmula de delicadeza devia ser a mais bela definição da nossa civilização." Trago-a de um recado escrito pela minha mãe, a dizer-me que havia cerejas à minha espera, e descoberto há pouco numa gaveta onde o guardara, como se ela mo tivesse voltado a escrever com a sua letra aguda e lenta. Trago-o dos erros cometidos, para fazer deles a lua de uma prudência ou o sol de uma ousadia. Trago-a das palavras enviadas por tantos, depois de aqui me lerem, e que, mesmo quando há silêncio na minha resposta, esse é ainda um silêncio de reconhecimento. Trago-a do aforismo de Wittgenstein, lido num livro que nunca fecho: "A ambição é a morte do pensamento." Trago-a de uma noite mudada num grande dia do corpo. Trago-a da festa feita a um gato e por ele devolvida num olhar limpo e longo. Trago-a da chama que, no Bosch que revi no Museu da Arte Antiga, arde a um ritmo que se acelera no nosso olhar. Trago-a da firmeza de um amigo, afirmando a vida contra a doença que a nega. Trago-a da luz de uma gema translúcida, vinda de um tempo antigo e de um país distante, que toco para sentir melhor que o mundo não começou ontem, nem existe só para nós. Trago comigo esta luz que atravessou a sombra de 2010. Trago esta luz até nós - e olho com ela o ano que chega, assim chegasse a uma janela que se abre.

José Manuel dos Santos

colunista regular do "Atual"

Texto publicado na revista Atual de 30 de dezembro de 2010