11 fevereiro 2011 0:00
Cioran, esse que acha o ter nascido um inconveniente, quando lhe perguntaram por que estranha razão ele, tão pessimista, não se suicidava, respondeu que só os muito otimistas se matam.
11 fevereiro 2011 0:00
A alegria é a coisa mais séria do mundo. "Eu não deixo que ninguém me estrague a minha alegria", dizia Almada Negreiros num gesto verbal tão exato como o desenho do seu lápis. E advertia: "Mas não se confunda a alegria com o riso." Neste tempo em que a alegria é, tantas vezes, a máscara da tristeza, há quem divida o mundo entre otimistas e pessimistas, como se uns dessem o que os outros tiram. Eu olho a linha que desenha esta separação na terra dos homens e acho-a falsa, incerta e confusa. Por isso, repito o que afirmou aquele que assinava "poeta sensacionista, narciso do Egito, futurista e tudo": "Nem otimista, nem pessimista. Não há entre mim e a vida nenhum mal-entendido."
Agora, da janela onde estou, olho o rio e a sua claridade alta de fantasma. Faz um sol branco. Chove. Deixa de chover. Depois, como na vida, faz sol e chuva ao mesmo tempo. Olho e vejo o barco pequeno e leve, que navega iluminado pela sua aparência. O tempo passa e traz com ele um paquete novo, imenso como um sonho, cidade naval em fuga ao seu próprio movimento. A seguir, tudo descansa - e o rio é o dos poemas antigos, lidos em noites de insónia para que o sono viesse com eles. Chove e faz sol. Pessimismo? Otimismo?
Agora, no café onde estou, oiço as vozes que falam a sua confusão. Há risos e contrarrisos. A partitura oral que se executa sem maestro tem gritos, interjeições, murmúrios, pausas, exclamações. Alguém diz: "O gajo pode ter muitos defeitos, mas tem uma coragem do caraças. Se fosse a ele, já tinha mandado isto tudo à merda!" A esse alguém responde outro alguém: "Eu até nem gosto dele, mas o cabrão resiste a tudo. É de aço! Tem mais fôlegos que um gato!" É de política que falam. Comem e estão felizes. Bebem e estão contentes. Continuam a falar de política: "Quem ganhou estas eleições foi a abstenção. Cada vez é maior! E, nas próximas, ainda vai haver mais. Qualquer dia só votam os candidatos." Deixo de os ouvir. Quando os volto a ouvir, dão a volta ao mundo: falam da Alemanha, da China, da Índia, do Brasil, da Tunísia, do Egito. Têm opiniões, teorias, previsões. Dizem-nas com uma voz direta e pronunciada, como se estivessem a falar na televisão. Falam de crescimento, de dívida, de bancos, de guerra, de revolução. Um atira, como se insultasse: "És um otimista!" O outro responde, como se injuriasse: "E tu és um pessimista!" Falam deles e das suas vidas: do que têm de pagar e do dinheiro que lhes falta para isso. Falam de trabalho, de carreira, de futuro. Têm ambição, incerteza, medo. Comem e bebem com ardor. Falam das férias do próximo verão. As vozes de uns entram nas vozes dos outros, caem, levantam-se, fundem-se.
Numa mesa ao lado, um rapaz gesticula em frente de uma rapariga. Ele grita que gosta dela. Muito. Como nunca gostou de ninguém. Ela, calada, ouve. Depois, põe uma mão sobre a outra e diz que, se ainda não é indiferença o que sente, também já não sente o mesmo amor que sentiu: "Estou a ser sincera contigo. Não quero que depois me acuses de não te ter prevenido. Estou confusa. Se já não sei bem o que sinto hoje, ainda sei menos o que sentirei amanhã." Tem o olhar duro, afastado. Ele olha-a nesse olhar e suplica-lhe: "Estou à toa! Não me deixes nesta dúvida. Não consigo viver assim." Ela responde-lhe com voz fria: "Não me estejas a pressionar. Não te prometo nada. Não te posso dizer aquilo que eu própria desconheço!" Ele coça a barba e chora envergonhadamente. Ela pede um café e ouve-o dizer: "Deixa-me ficar contigo esta noite. Preciso disso!" Ela levanta a voz: "Nem penses! Esse pedido é uma falta de respeito por mim - e por ti." Ele: "Prefiro essa falta de respeito a ir sozinho para casa." Ela: "Já te disse o que tinha a dizer. Não sejas infantil. Se continuas a portar-te como uma criança, vou-me embora." Pessimista, ela? Otimista, ele? Ou o contrário?
Schopenhauer fala do pessimismo da inteligência e do otimismo da vontade. De Nietezsche, nasceu o "otimismo trágico", aquele que se ergue sobre um chão, triste, temido, tremido. Cioran, esse que acha o ter nascido um inconveniente, quando lhe perguntaram por que estranha razão ele, tão pessimista, não se suicidava, respondeu que só os muito otimistas se matam. A esses, a realidade desiludiu-os sempre. Ao contrário, para os pessimistas, ela é sempre melhor do que a esperam.
Otimista? Pessimista? Diz Yourcenar: "O otimista e o pessimista, o homem que acredita que tudo se compõe e o homem que acredita que tudo acaba mal passeiam, argumentando, no lugar de um antigo campo de batalha. Ambos peroram, enrouquecem, gesticulam. Ambos retiram da paisagem provas de apoio às suas teses. E, de facto, durante esse tempo, a erva continua a crescer sobre as sepulturas e os mortos a apodrecer sob a erva." Assim é - e assim somos no que assim é.
colaborador regular do "Atual"
Texto publicado na revista Atual de 29 de janeiro de 2011
