18 fevereiro 2011 0:00
Entra no anfiteatro, como se regressasse aos tempos da infância em que ia à missa, esperando encontrar aí a salvação. Passa horas em salas, atenta, (...) Embevecida, a ouvir falar quem fala. Mesmo quando não percebe o que ouve, é como se percebesse.
18 fevereiro 2011 0:00
Dos passos que dá, os que mais a alegram são aqueles que a levam para qualquer sala onde se fala e se escuta. Apressada e contente, sai de casa e entra no carro. Quando há muito trânsito, fica nervosa. Guia depressa e, se lhe notam isso, exalta-se e barafusta, gritando aos outros condutores: "Vou a uma conferência e já estou atrasada!" Chega ao destino e contempla, encantada, o edifício onde vai passar algumas horas da sua vida. O antes, o durante e o depois, vive-os como um ritual. Entra e põe no peito, com unção, o cartão que lhe é dado e onde se lê "Participante". Conserva religiosamente esses cartões, ordenados e classificados por temas, num arquivo que visita assiduamente. Depois, corre à sala a reservar um lugar nas primeiras filas. Volta ao átrio, observa quem vai chegando. Sente-se feliz no meio desta gente. Tem orgulho em pertencer, mesmo que por pouco tempo, a esta elite. Nos colóquios, há sempre pessoas célebres, e fica deslumbrada por estar perto delas. Aproxima-se de um e diz: "Vou ouvi-lo com toda a atenção. Este colóquio é muito interessante. Os oradores são excelentes. E o tema, embora não seja bem da minha área, desperta-me imensa curiosidade." A outro declara: "Não troco isto por nada. A si, senhor professor, já o ouvi noutra ocasião, e foi brilhante. Tomei notas de tudo o que disse e ontem estive a consultá-las." E passa a mão pelo cartão que tem no peito.
Esta é a mais feliz ocupação da sua vida. Coleciona colóquios, conferências, congressos, seminários, simpósios, palestras, debates, encontros, ciclos, mesas-redondas, lançamentos, inaugurações, visitas guiadas, ações de formação, workshops. Passa horas e horas em auditórios, anfiteatros, espaços polivalentes, pavilhões multiusos, salões nobres, aulas magnas, salas multimédia. Frequenta centros culturais, universidades, academias, bibliotecas, galerias, teatros, cinematecas, fundações, cenáculos, tertúlias, associações, sociedades, galerias, livrarias, museus, laboratórios. Conhece os lugares, os seus recursos técnicos e logísticos. Sabe os que têm ar condicionado e os que não têm, aqueles onde há poltronas confortáveis e aqueles onde as cadeiras deixam as costas a precisar de massagem, os que são em zonas centrais e os que são em áreas periféricas. Gosta que lhe peçam informações e adora dá-las (usa muito as redes sociais).
"À partida" (fala assim), todos os temas lhe interessam: economia, sociologia, história, filosofia, politologia, relações internacionais, linguística, literatura, artes visuais e performativas, comunicação, arquitetura, cinema, ciência, energia, religião, medicina ocidental, medicina oriental, ecologia, esoterismo. Nos dias de um mês, pode ir a uma conferência sobre energias renováveis, a um colóquio sobre bioética, a um workshop de desenho de luz, a um ciclo acerca da Viena de Musil, Freud e Wittgenstein, a um debate sobre revisão constitucional, a um jantar literário sobre Júlio Dinis, a um seminário de feng shui, a um encontro sobre transplantes hepáticos, ao lançamento de um livro de Gonçalo M. Tavares, a um ciclo sobre o futuro do mar, a um simpósio sobre arte erótica chinesa no tempo da dinastia Ming, a uma apresentação de métodos para a inovação social.
Se os colóquios são abertos, vai. Se são pagos, vai na mesma ("economizo para isso"). Antes de ir, pesquisa no Google, anota o programa, consulta as biografias dos oradores, lê os resumos das comunicações (aprendeu a dizer abstracts). Fascina-se com a linguagem especializada, os parágrafos enormes, os períodos cerrados, os parênteses cheios, os termos desconhecidos. À hora marcada, entra no anfiteatro, como se regressasse aos tempos da infância em que ia à missa, esperando encontrar aí a salvação. Passa horas em salas, atenta, concentrada, embevecida, a ouvir falar quem fala. Mesmo quando não percebe o que ouve, é como se percebesse. Esforça-se, toma notas, utiliza a tradução automática. Ao intervalo (aprendeu a dizer coffee break) mete conversa com outros participantes. Enquanto, com o guardanapo, limpa os lábios do leve açúcar de um bolo, comenta: "Foi notável aquele americano. Dizem que para o ano ganha o Nobel. Aprendi imenso com o que ouvi." E sorri, feliz. Depois, volta ao auditório para ouvir os conferencistas que faltam.
Ouve. Agora, o orador acabou de falar e há palmas. Chega o período de debate. É um momento que lhe provoca nervosismo. Escuta as perguntas. Às vezes, tem vontade de fazer uma, mas não se atreve. Um dia, numa conferência sobre as "Categorias" de Aristóteles, levantou-se e fez uma pergunta. Assim que acabou de "formular a questão" (diz assim), soou, enorme e sonora, uma gargalhada na sala. Ainda hoje não consegue descobrir a razão dessa gargalhada sem fim, mas é como se a ouvisse sempre nos seus ouvidos atentos...
colaborador regular do "Atual"
Texto publicado na revista Atual de 12 de fevereiro de 2011
