4 fevereiro 2011 0:00
Aquilo que descobriram murmurava-lhes: façam da vossa força fraqueza, façam do vosso problema solução, façam da vossa vantagem desvantagem - e ela tornar-se-á uma vantagem maior. (...) Ginastas do esplendor seriam acrobatas da miséria.
4 fevereiro 2011 0:00
Foram três a alugar a casa, mas no dia seguinte estavam lá trinta. Chegaram de um país distante e falam uma língua que, às vezes, se cruza com a nossa. Não sabem dizer sem gritar - isso é-lhes uma prova de vida. Para existirem, fazem-se ouvir. Para obterem território, têm de o conquistar. Mas juntam o princípio da realidade ao princípio do prazer: adoram zangas, despiques, rixas, litígios. Todos os dias, como se fosse um jogo, armam contendas, dissídios, zaragatas. Mas, à noite, a amizade reconstitui-se e as garrafas voltam a esvaziar-se. Até que um novo dia nasça e com ele a cólera cresça.
No prédio, onde havia sossego passou a haver barulho. Na rua, onde existia paz passou a existir guerra. No bairro, onde havia previsão passou a haver surpresa. E todos passaram a olhar aqueles homens de trajes gastos como se olhassem um fenómeno natural: inesperado, violento, colossal. Mas, se a curiosidade mata o gato, às vezes salva o dono dele. Pouco a pouco, os vizinhos quiseram saber mais: de que terra vêm?, que comem e bebem?, que deus adoram?, que costumes têm?, que leis respeitam?
Por tanto quererem saber, quiseram saber de que viviam. Essa pergunta também eles a faziam: "Vamos viver de quê?" Como não tinham resposta para lhe dar, tornaram-se, sem disso terem consciência, popperianos, usando o método da 'tentativa e erro'. Procuraram e não encontraram; pesquisaram e não descobriram; experimentaram e não alcançaram. Então, com a necessidade a aguçar o engenho, tentaram fazer do erro um acerto. Todos aqueles homens, dos mais novos aos mais velhos, são ágeis e elásticos nos seus corpos magros. Outrora, uns tinham trabalhado no circo; outros haviam sido lenhadores; outros ainda foram soldados e atletas. Olharam-se como se fossem espelhos uns dos outros e, a rir, descobriram-se - e descobriram.
Aquilo que descobriram murmurava-lhes: façam da vossa força fraqueza, façam do vosso problema solução, façam da vossa vantagem desvantagem - e ela tornar-se-á uma vantagem maior. Aprendido isto, aprenderam mais: ginastas do esplendor seriam acrobatas da miséria, prestidigitadores do espetáculo tornar-se-iam funâmbulos do infortúnio. E assim decidiram ser o que não eram para ser o que não seriam.
No dia seguinte, o prédio, a rua, o bairro viram que alguma coisa estava a acontecer. Em lugar de presenças e de gritos havia, naquela casa, ausências e silêncios. No dia seguinte ao dia seguinte, observaram mais e viram melhor: logo pela manhã, eles saíam de casa com os seus corpos direitos, firmes e ginasticados. Na mão, levavam sacos. Caminhavam até à paragem e entravam em diversos autocarros, cada qual indo para o seu destino. Para que a investigação fosse conclusiva, os vizinhos usaram mais recursos e mais tempo: acompanharam-nos nas viagens de autocarro e desceram com eles. Aí, viram o que não acreditavam estar a ver: mal abandonavam o autocarro e punham o pé em terra firme, aqueles homens contorciam-se e rastejavam. Amparados a bengalas, muletas, canadianas e andarilhos, tirados dos sacos, estendiam o gesto trémulo e humilde, pedindo esmola a quem passava. Não há nos seus corpos uma curvatura leve ou um coxear ligeiro. Tudo neles é terrível: os pés voltados para trás como cabeças, as cabeças tocando o chão como pés, as mãos torcidas como ramos, as costas dobradas como arcos.
A resposta à pergunta "Vamos viver de quê?" é assim dada. Quem, agora, anda pela cidade vê-os a dá-la. Lá estão: desgrenhados e suplicantes, pedem, rogam, rezam, clamam, imploram. Perante aquele espetáculo de dor e sofrimento, não há coração humano, mesmo o mais frio e o mais duro, que não sangre e ceda. E eles agradecem, louvam, bendizem.
Como se diz num velho livro que não morre, de seu título "Lazarilho de Tormes", "aqueles que tiveram a Fortuna contrária, com força e manha remando, chegaram a bom porto". Assim, estes homens descobriram nos seus corpos a mina inesgotável de um ouro que os sustenta e satisfaz. Quando, depois de um dia de trabalho, regressam a casa, entram nela firmes, direitos - e felizes. Trazem nos bolsos as moedas e as notas com que vivem de cabeça erguida, depois de as terem obtido de cabeça vergada. Atentos às oportunidades, quando, pelo país, há acontecimentos que atraem multidões (jogos, peregrinações, espetáculos, festas, feiras, romarias), lá estão eles a dar a quem lhes dá muito mais do que recebem: a boa consciência de terem feito bem a quem exibe o mal.
Agora, no prédio, na rua, no bairro, todos sabem do que vivem aqueles homens que vieram de um país distante e falam uma língua que se cruza com a nossa. Eles fizeram das dificuldades oportunidades. Com engenho, iniciativa e empreendedorismo, criaram um negócio rentável. São respeitados. Em casa, até já conseguem falar mais baixo, como se dissessem segredos uns aos outros...
colaborador regular do "Atual"
Texto publicado na revista Atual de 29 de janeiro de 2011
