Jaime Nogueira Pinto

Do(i)s heróis: Ulisses e Aquiles

16 abril 2007 3:27

16 abril 2007 3:27

À partida, o herói é um destruidor de regras estabelecidas, de mitos e ritos antigos. Mas actua de acordo com um código, segundo outras regras, outros mitos. A 'Ilíada' retrata um mundo arcaico, uma história passada num campo militar grego, uma horda feudal que cerca uma cidade inexpugnável: Agamémnon é 'um primeiro entre iguais'; Aquiles e a sua cólera, os seus valores, são também arcaicos, quase incompreensíveis, (in)humanos, para nós enquanto racionais. Apesar da 'humanização' pelo Brad Pitt no filme de Wolfgang Petersen, da paixão por Briseida e compaixão pela dor de Príamo (Peter O'Toole que agora faz estes papéis de velho da Antiguidade).

Ulisses introduz neste quadro 'antigo' a modernidade; é um conciliador – traz a política e o interesse a um quadro que é regulado (só) pela honra e pelo medo; e introduz ardis, truques, na arte da guerra; e ganha fora das regras.

O cavalo de Tróia é a entrada da modernidade nesta História (e Literatura) ocidental. Os orientais já tinham estes ardis – a 'Bíblia' está cheia deles, no Livro dos Juízes e no Livro dos Reis. As 'Mil e Uma Noites', na narrativa de Sherazade, também.

Mas Ulisses, depois deste estratagema ("strategos" é o chefe militar...) que põe fim ao cerco de Tróia (e que já não vem na 'Ilíada? que acaba com os 'funerais de Heitor') tem todo um livro para si – a 'Odisseia'.

É uma das minhas mais remotas leituras a 'Odisseia' na versão resumida da Sá da Costa, "explicada às crianças e contada ao povo"... Ou seria contada ao povo e explicada às crianças? Havia também uma edição em quadradinhos, e depois as versões dos peplum. Impressionavam-me os Cíclopes e o Polifermo; Calipso e Circe, que apesar da Censura do Estado Novo não eram nada de deitar fora; as naves, com os remadores, que eram uma referência obrigatória, no início daquelas espantosas produções fílmicas franco-italianas, com uma baralhada de heróis da Antiguidade. E uma voz "off", que ficou ali, tempos sem fim, um narrador que dizia "Quatrocenti anni ante Christo, Ulisses...".

Ulisses é um herói não só do seu 'mundo' – o Mediterrâneo, muitos séculos antes de Cristo – mas de sempre e para sempre. Curioso, corajoso, inteligente, astucioso, prudente, forte, bom marido, bom pai, bom amante; chefe exemplar, leal aos seus amigos, mas rei justiceiro pagando as ofensas pouco cristãmente – como os pretendentes ficaram a saber, massacrados até à última.

Aquiles era de outro mundo. O mundo antigo, um mundo antes de Cristo e antes de Aristóteles. Um mundo dórico, clânico, primitivo, bárbaro. O mundo grego antes da razão filosófica, da compaixão dramática, da política aristotélica. Um mundo moralmente assustador, mas com a sua sedução estética. Aquiles é o pai de uma raça – a vitalista e irracionalista das 'bestas loiras'. Que seduziram Nietzsche, professor tímido e cortês, enfermo crónico, fisicamente nos seus antípodas. E o génio cabotino de Wagner.

Depois, no século XX, estas éticas pagãs serviram para muita coisa. Para outras éticas – estéticas mais complicadas que agora nos levariam longe. Um longe para onde hoje não queremos ir.