15 outubro 2007 8:00
15 outubro 2007 8:00
A FOTOGRAFIA mais esplendorosa que consegui fazer no Brasil foi a de um ipê amarelo em floração absoluta contra um céu azul de paraíso. O mérito não foi da fotógrafa, mas da árvore. A beleza tem esse dom de sobreviver a qualquer choque da realidade. Pois as flores desse ipê, esse céu devastadoramente puro, pertencem a São Paulo. "Não é possível! Cê tá brincando!" - diziam-me, dias depois, no Rio, descrentes de que a árvore-símbolo do Brasil pudesse florir assim escandalosamente sob o invólucro azul de uma cidade que tem fama de cinzenta.
Uma das diferenças abissais entre São Paulo e o Rio é essa: nenhum paulista se atreve a desconfiar da autenticidade da beleza do Rio. Se quiserem ser maledicentes, os paulistas falam da preguiça dos cariocas, do seu excesso de fanatismo pelo samba. Se quiserem ser mesmo muito maledicentes, os paulistas dizem que os cariocas são fúteis e deslumbrados - mas a verdade é que nem uma única vez me entrou pelos ouvidos, em São Paulo, um grão de maledicência. Nada. Pelo contrário: estas críticas foram-me expostas como o "cliché" paulista. Mas se há coisa que o paulista genuíno repudia, é o cliché. O paulista é quase sempre snobe, mas nunca será previsível. E será certamente hipercrítico, mas nunca será verrinoso. Aparte estas duas características de base, o paulista pode ser tudo o que quiser - e sabe disso. São Paulo é um lugar onde os sonhos se estendem até ao infinito; uma cidade com grandeza, que acolhe nas suas casas qualquer estrangeiro, como um dos seus. É essa a graça inigualável das cidades construídas por estrangeiros - e em São Paulo, essa graça é ampliada pela confusão organizada do espaço. Porque esta megapólis é, na realidade um composto de microcidades entrelaçadas e distintas: do popular bairro judeu (hoje sobretudo coreano) do Bom Retiro ao requinte manhattaniano de Higienópolis (onde há dias Fernando Meirelles filmava cenas de Blindness, a adaptação cinematográfica do Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago), do bricabraque nipónico da Liberdade à elegância verdejante de Vila Madalena, do movimento fervilhante da Avenida Paulista à tranquilidade académica da Previdência, todas as experiências urbanas são possíveis. Podemos decidir chamar Tóquio à cidade e rumar a um espectáculo de dança japonês, ceando depois um sushi à prova do mais arreigado ocidental, por exemplo, no Nagayama. Podemos preferir uma viagem mista, começando no melhor da cultura brasileira - com uma aula-show de Arthur Nestrovski em torno dessa obra-prima de Tom Jobim que é "Águas de Março", aula complementada pela surpreendente actuação de um jovem e excelente cantor chamado Celso Sim - e continuando para o melhor da gastronomia italiana, ceando, por exemplo, no Gero. Ou sair, em estado de paixão, da Estação da Luz, que alberga o levitante Museu da Língua Portuguesa, e passear a pé até ao Bom Retiro, para degustar, no singelo restaurante grego Acrópoles, um polvo com canela que torna o almoço um pecado de luxúria. O Brasil é o talento da mistura.
O formato da aula-show, que Arthur Nestrovski e José Miguel Wisnik (ambos músicos e professores de Literatura) têm vindo a desenvolver, condensa o melhor da cultura brasileira - a música e a literatura. Nesta definição de literatura incluo também o ensaio, que o Brasil - como país novo e destemido que é - cultiva (e publica) muitíssimo mais do que Portugal. Estudos recentes demonstraram que a inteligência das crianças musicalmente instruídas se desenvolve muito mais do que a das que o não são - e, no entanto, a música continua a ser desprezada, no nosso país. É também por isso que Portugal é um país emperrado - e o Brasil consegue dançar, com uma delicadeza infinita, sobre todos os problemas.
No Rio ninguém se afadiga a arranjar programas - a cidade é, por si só, o programa: praia, bar, restaurante, samba - e já está. Ou percorrer a pé o Leblon e Ipanema, entrar nas múltiplas livrarias (quase todas com café, algumas mesmo com restaurante). Ou marchar uns quilómetros na floresta da Tijuca - cujo trânsito fecha ao domingo para esse efeito - e terminar o dia com um repasto nordestino no alto de Santa Teresa. Mas o Rio também tem o seu lado lunar. A experiência de ver um documentário sobre o mordomo de uma antiga mansão numa sala (agora sala de cinema) dessa mesma casa, pode tornar-se um voo aos confins da alma humana - quando se trata da Casa da Gávea (hoje Centro Cultural do Instituto Moreira Salles) e quando o filme tem a melancolia dilacerante e a verdade crua que tem Santiago, de João Moreira Salles (com banda sonora do nosso genial Rodrigo Leão). Mais um fantástico filme brasileiro que - vá-se lá saber porquê - provavelmente nunca veremos em Portugal. Talvez consigamos ver em DVD Pedrinha de Aruanda, um filme em que Maria Bethânia e Caetano Veloso atravessam a noite, a caminho de Santo Amaro, conversando sobre a infância e sobre a lua de Fernando Pessoa. A Caetano, pelo menos, podemos vê-lo e ouvi-lo agora, nos Coliseus de Lisboa e Porto. Um show-aula de letra e música, que nos faz tanta falta.