Inês Pedrosa

Raul

19 agosto 2009 8:00

Inês Pedrosa

Amigo é alguém que puxa pelo melhor de nós.

19 agosto 2009 8:00

Inês Pedrosa

"Perdi um amigo", diziam, no velório e no cemitério, pessoas que nunca tinham trocado uma palavra com ele. E diziam a verdade: amigo é alguém que nos torna melhores, que puxa pelo melhor de nós. Que nos faz rir. Que nos comove. Que não nos falha. Solnado não falhava: tinha um sentido do tempo e do modo extremamente rigoroso, que não era apenas um dom do talento, mas antes uma consequência da sua minuciosa e autêntica atenção aos outros. Apanhava, num relance, a verdade de cada um. Tem-se falado muito, e com justiça, da sua imensa generosidade - mas isso não significa que Raul fosse um bonzinho generalista. Nada nele era indiscriminado: fazia a triagem, e tinha uma memória valente. Quem lhe lixasse um amigo estava lixado com ele para o resto da vida. Quando não gostava de uma atitude ou acção, dizia-o, com uma frontalidade tranquila.

Em Setembro de 2007 criticava a desconsideração da direcção da RTP, que deixou sem resposta, durante quase dois anos, a sua última proposta de programa, "Amores Perfeitos". O rigor e a autenticidade, qualidades que representam um respeito profundo por si mesmo e pelos outros, fizeram dele a estrela assombrosa que é. As estrelas têm brilho próprio, uma cintilação que continua a faiscar na intimidade da distância, indiferente à morte. O aplauso monumental com que a multidão saudou a saída do caixão de Raul Solnado sinaliza essa eternidade.

Não o perdemos, porque um amigo, por definição, não se perde: quando morre, fica a respirar dentro de nós. Tantas vezes Raul nos repetiu: "façam o favor de ser felizes", que o mínimo que podemos fazer é cumprir esse seu cavalheiresco pedido. Raul não pedia nada que não fizesse primeiro. A sua magnífica biografia ("Raul Solnado - A Vida Não se Perdeu"), escrita pela jornalista e escritora Leonor Xavier (que seria a sua última mulher, e soube manter-se sua amiga, discreta e presente, até ao fim), mostra o trabalho, o empenhamento e a coragem que essa aparente vocação para a felicidade lhe exigiu. Solnado não nasceu em berço de ouro nem teve uma vida fácil. Que tenha sabido manter a inocência e a capacidade de encantamento necessárias a qualquer artista, sem se deixar entontecer pela fama e pelas mordomias dela, já seria um feito.

Mas Raul fez mais do que isso: canalizou a popularidade e os proventos dela a favor da elevação do povo a que pertencia, construindo o primeiro teatro de bolso português - um teatro que baptizou com o nome de outro actor (Villaret) , e no qual investiu tudo o que tinha. A ideia nasceu-lhe no Brasil - país onde, na década de 60, atingiu grande popularidade, e onde havia já uma série de teatros dentro de prédios de habitação, o que facilitava a ida das pessoas ao teatro, ou seja, a democratização da arte. Em 1999, em conjunto com Armado Cortês, Manuela Maria e Carmen Dolores, lançou um novo, ousado e generoso projecto: a Casa do Artista, belíssima instituição de apoio aos artistas mais velhos - e que, naturalmente, também inclui um teatro. Já doente, este lisboeta que nunca se encostou à política e sempre exerceu a cidadania, aceitou, por duas vezes (em 2007 e agora) ser mandatário de António Costa na sua candidatura à presidência da Câmara de Lisboa. Há um mês, no dia 13 de Julho, esteve no Jardim de São Pedro de Alcântara ao lado de Costa, dando uma vez mais a cara pelas suas convicções.

Amar Raul Solnado não pode resumir-se a recordá-lo e, menos ainda, chorá-lo. Toda a sua vida foi um exemplo do amor enquanto prática quotidiana, minimal, persistente. Estou certa de que, em vez de flores, o Raul gostaria que o homenageassem com uma imensa coroa de cheques para a Casa do Artista - que precisa muitíssimo de dinheiro para manter a qualidade (nas instalações, na alimentação, no apoio médico e social) que os seus fundadores exigiram que tivesse. Solnado teve a arte de traduzir como ninguém essa coisa indefinível, triste e alegre, atada e desenrascada, que é a alma portuguesa - mas tinha com o dinheiro uma relação franca, descomplexada e magnânima, que infelizmente Portugal continua a não saber cultivar.

Raul é o avesso de luar. Solnado é, de forma transparente, sol nascido. Raras vezes um nome foi tão perfeito na definição de um destino: homem da noite, da boémia, de paixões incandescentes e conversa infinita, Raul Solnado foi também o atiçador do sol num país anestesiado pela pobreza e pela censura. Afinou o humor de modo a transformá-lo num instrumento de inteligência e emancipação. Honremos a sua herança de exigência e liberdade. Ele merece-o. Fez tudo para que o merecêssemos.