23 fevereiro 2011 0:00
Sou muito mais livre do que era quando aqui cheguei.
23 fevereiro 2011 0:00
Termina hoje, por decisão da nova direcção do Expresso, esta crónica. Devo este espaço, iniciado em Janeiro de 2002, a José António Saraiva, então director do jornal. Estou certa de que José António retorquiria que não lhe devo nada, e essa atitude, tão rara num país habituado a preferir a rotina alternada dos favores e obediências em detrimento do exercício da consciência ética e da liberdade, reforça a alegria deste agradecimento. O convite nasceu das conversas e do trabalho em torno de um projecto de revista mensal, com design de Jorge Colombo, que Helena Matos e eu apresentámos ao Expresso. Chamava-se 'Única' essa revista que não chegou a nascer: as matérias dos números zero e um, que chegaram a ser feitos, foram publicadas na revista do Expresso, e José António Saraiva viria depois a solicitar-nos autorização para rebaptizar a revista com o título que mantém até hoje. Agradeço também a Nicolau Santos o entusiasmo com que acolheu e defendeu o projecto dessa 'Única' inicial. Agradeço a Henrique Monteiro a manutenção desta crónica ao longo dos anos em que dirigiu o Expresso e a Violeta Lòpiz as ilustrações delicadas e inteligentes que a têm iluminado. Durante nove anos, semanal e ininterruptamente, encontrei aqui o desafio de pensar e escrever livremente, sem limites temáticos ou censórios de espécie alguma. Entre 1989 e 1993 tivera o privilégio de pertencer aos quadros da redacção do Expresso, onde aprendi e cresci muitíssimo. Esta página não chegaria para agradecer a todos os que, nesta casa, me acompanharam e me ajudaram a pensar mais e melhor. Mas não posso fechar o capítulo sem agradecer ao fundador deste jornal de referência, Francisco Pinto Balsemão, não só as palavras de estímulo que repetidamente dele recebi, mas sobretudo o exemplo de independência, coragem e rigor que sempre nele encontrei.
Sem leitores não existiriam cronistas - nem jornais. Tive a sorte de encontrar leitores atentos e exigentes. Agradeço tanto aos que me levantaram o ânimo em momentos de especial cansaço ou desalento como aos que me espicaçaram as meninges, fustigando-me com críticas ferozes - e até, por duas vezes, processos judiciais. A condição de arguida é, aliás, muito útil para quem, como eu, tem como principal objectivo de vida o entendimento profundo da natureza humana.
Procurei pensar sobre cada tema, fosse ele a guerra no Médio Oriente ou a tragédia eterna da violência dita 'doméstica', a política cultural ou o trabalho infantil, como se tivesse aterrado de Sirius (isto dizia Augusto Abelaira sobre o seu método de cronista) e olhasse para este mundo pela primeira vez - ou seja, sem um programa de pensamento prévio encaixado numa cartilha. Acreditei sempre que o risco, mais do que provável, de errar é muito menos grave do que o erro de comprar, alugar ou roubar um pensamento já feito. Nunca tive a pretensão da imparcialidade - todos somos parte de alguma coisa, em qualquer situação; apenas procurei a justeza, isto é, a compreensão ou compaixão, no sentido de partilha da paixão alheia. Com Maria Antónia Palla, jornalista e figura humana de invulgar grandeza, aprendi a descascar a realidade a partir das histórias individuais. Da atenção ao particular nasce o respeito, e tudo é particular e íntimo antes de ser comum e político. Não aceito a distinção entre os 'temas fracturantes' e os outros, ditos 'sérios'; entendo a dicotomia como uma forma de ditadura particularmente castradora.
Walter Galvani, escritor brasileiro, resumiu o labor da crónica nesta imagem exacta: "Ofício de cronista é como voo de gaivota, rente às ondas, até o ponto e a hora de fisgar o peixe. E então vem o difícil: voar mais e mais, sem deixá-lo cair." As palavras são instrumentos de voo. Instrumentos sensíveis e precisos, que não resistem à ferrugem do medo ou da falsidade. Pensar é perigoso - e pensar em público, semana após semana, mais perigoso ainda: cria uma corrente de ar que desloca as ideias instaladas. Sem perigo não há liberdade. Sou muito mais livre do que era quando aqui cheguei. A gratidão que sinto por todos aqueles - conhecidos ou desconhecidos, amigos ou inimigos - que me arejaram o cérebro ao longo deste trajecto não tem medida. Ter tanto e tantos a quem agradecer é a melhor aproximação que conheço à felicidade. Obrigada.
Nota: Inês Pedrosa escreve de acordo com a antiga ortografia.
Texto publicado na revista Única de 19 de fevereiro de 2011