Inês Pedrosa

Meryl, a inesquecível

13 março 2010 0:00

Inês Pedrosa (www.expresso.pt)

13 março 2010 0:00

Inês Pedrosa (www.expresso.pt)

Se me perguntarem qual é a imagem cinematográfica da dor, direi: o rosto de Meryl Streep no momento em que o nazi a força a escolher um dos filhos para matar em "A Escolha de Sofia" (1982). Se me falarem de erotismo no cinema, lembro-me imediatamente do rosto de Meryl Streep enquanto se entrega a Jeremy Irons (sim, este cavalheiro também favorece a boa memória) em "A Amante do Tenente Francês" (1981). E o rosto da paixão é ainda o de Meryl Streep - um rosto radioso num céu sem nuvens, ao lado de Robert Redford, em "África Minha" (1985), ou desmaquilhado, envelhecido, lavado em lágrimas, na solidão de uma carripana velha, em "As Pontes de Madison County" (1995). O que Meryl Streep faz é muito mais forte do que o acto de representar: ela transforma cada personagem numa pessoa inesquecível. Trata-se de um fenómeno de transfiguração. Não há filme menor que não se agigante quando ela entra em cena. É agora, pela décima sexta vez, candidata a um Óscar. E protagoniza um filme ("It's Complicated") em que dá a volta à cabeça de dois homens: um pretendente (Steve Martin) e o ex-marido (Alec Baldwin), que a trocou por uma jovem beldade da qual se fartou rapidamente, iniciando então um romance clandestino com a entusiasmante ex. Na edição de Janeiro da "Vanity Fair", Meryl dizia, encantada: "É incrível - tenho 60 anos e estou a representar o papel principal em comédias românticas! Bette Davis está a dar voltas na cova. Ela tinha 42 anos quando fez 'All About Eve' e 54 quando fez 'What Ever Happened to Baby Jane'."

A comparação faz todo o sentido: tal como Miss Davis, Mrs. Streep nunca foi particularmente bonita. Mas ambas possuíam uma coisa mais poderosa do que a beleza: carisma. Uma velocidade interior absolutamente incomum e hipnótica. O cinema está, como sempre esteve, saturado de belezas que se esquecem no preciso momento em que o filme acaba. A beleza é fácil de filmar, fácil de vender e dificílima de recordar. Os olhos de Bette Davis, como os de Meryl Streep, são imunes ao esquecimento. Porque são portais de inteligência, humor, desespero e encantamento. Bette Davis levou com muitas portas na cara e ouviu desaforos em série. "Quem é que me fez perder o meu tempo com esta?", rosnou o produtor Samuel Goldwyn no fim do primeiro teste dela para o cinema. O mesmo Goldwyn pagar-lhe-ia, dez anos mais tarde, 100 mil dólares para que protagonizasse "The Little Foxes", de William Wyler. Meryl Streep teve uma experiência idêntica nas audições para protagonista do remake de "King Kong", em 1976 - papel que acabaria por ser entregue a Jessica Lange. No fim da actuação de Meryl, o produtor, Dino De Laurentis, perguntou ao filho: "Porque é que me mandaste este coirão? Esta mulher é tão feia!" Fez este comentário em italiano, pensando que a actriz não o entenderia. Mas ela retorquiu num italiano perfeito: "Desculpe tê-lo decepcionado."

Bette Davis só conseguiu os seus primeiros grandes papéis de má porque as bonitas os rejeitavam, temendo perderem os favores do público e do star-system. Davis percebeu que debaixo dessa maldade existia a força esmagadora de uma nova mulher, pronta a olhar de frente os homens - e a apagá-los, como sempre aconteceria quando contracenava com eles. Mas no tempo de Bette Davis, como sublinha Meryl Streep, essa força era enxotada das telas assim que aparecia a sombra da primeira ruga. A própria Meryl chegou a convencer-se, aos 38 anos, de que a sua carreira estava no ocaso. Hoje, diz-se feliz por já não ser uma rapariga, continuamente preocupada com o facto de nunca ser suficientemente atraente. Sexagenária, tornou-se uma estrela, apaparicada e paga como tal. Hollywood continua a destratar as mulheres, e Meryl não se cansa de o repetir: os dez actores de topo ganham o dobro das dez actrizes que lhes correspondem. Mas os honorários de Meryl Streep têm subido, porque o seu nome num filme significa, além de prestígio, a garantia de grandes lucros. Dinheiro é poder; o estrondoso sucesso desta actriz levou os produtores a interessarem-se por histórias centradas em mulheres com mais de 30 anos, o que representa uma revolução nos parâmetros e estereótipos de Hollywood. Ganhe ou não ganhe mais este Óscar, Meryl Streep já conseguiu fazer avançar o mundo.

Texto publicado na edição da Única de 6 de Março de 2010