Inês Pedrosa

A beleza derradeira de Farrah Fawcett

8 julho 2009 8:00

Inês Pedrosa

Careca, enrugada, envelhecida, ela brilhou como uma estrela autêntica.

8 julho 2009 8:00

Inês Pedrosa

Não foi muito bafejada pela sorte durante a vida, a formosa Farrah Fawcett, mas teve um azar particular no momento da morte. Morreu no mesmo dia de uma estrela pop cujo nome nem me apetece escrever, por várias razões e mais essa, de ofuscar a morte dela. As outras razões decorrem de limitações éticas que não consigo ultrapassar, a começar pelo racismo: a tal estrela pop acabou por morrer por causa da sua obsessão em renegar a sua própria cor de pele, o que me parece um fundamentalismo patético. De cada vez que se esbranquiçava, ou afilava o nariz e os traços do rosto, era como se cuspisse nos milhões de negros que lutaram e lutam contra o racismo - ainda tão presente no mundo, a começar pelos Estados Unidos da América. Há tempos apareceram nós de forca na porta do escritório de uma professora negra da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Dizem que a tal estrela pop cantava bem e dançava melhor. Talvez. Não consigo avaliar. Vi-o pendurar um bebé no vácuo. Soube que pagou milhões para encerrar processos de pedofilia. Vi-o marchar por entre as multidões com a cara tapada por um véu, com um cordão de capangas à volta. São imagens que me impedem de apreciar as suas qualidades musicais. Nesta semana que se seguiu à morte da estrela pop, os meios de comunicação globais serviram uma overdose de música sua, entremeados de cenas patéticas da histeria das massas. Porque não chora a arraia-miúda a morte de Neda Agha-Soltan, a jovem iraniana assassinada à queima-roupa pela polícia iraniana? Porque esqueceu o mundo, a começar pelo Irão, a lendariamente séria BBC, para ficar dias seguidos a louvar a estrela pop? Que influência tem a máquina de propaganda das grandes empresas discográficas nestes acontecimentos? Os discos da estrela morta, que estava em pousio e recessão há vários anos, tornaram-se, de súbito, líderes de vendas. Comprados por seres humanos ou por abutres?

Farrah Fawcett aceitou fazer um documentário sobre a sua luta contra o cancro. No fim desse filme, com a câmara na mão, volta-se para nós e pergunta: "and you, what are you fighting for?". É o instante mais belo de toda a sua carreira cinematográfica; mirrada pela doença, com o corpo e a famosa cabeleira destruídos pela quimioterapia, transformada apenas em sorriso e força pura, Farrah Fawcett interpela-nos: o que nos move? Qual é a nossa luta? O que fazemos com os nossos dias?

A loira espampanante da série televisiva "Os Anjos de Charlie" deu-me duas lições importantes. A primeira, nessa qualidade leve de anjo valente: muitas miúdas de quinze anos, por esse mundo fora, aprenderam com ela, na segunda metade dos anos setenta do século passado, que a doçura e a beleza podiam ser combinadas com a inteligência e a coragem. Na época não liguei muito à série, nem à lição. É daquelas coisas que só se reconhecem quando o tempo passa e a presunção da adolescência acalma. A segunda, na qualidade de lutadora frontal, capaz de se expor sem maquilhagem nem efeitos especiais - despida da máscara da beleza, careca, enrugada, envelhecida, assumindo o sofrimento e a paixão pela vida, até ao fim. Num mundo de monstros plastificados, a autenticidade de Farrah Fawcett, o seu trabalho a favor do aumento da investigação do cancro e o seu exemplo de verdade são inspiradores. Ao seu lado esteve, até ao último momento, Ryan O'Neal, o protagonista do "Love Story" da minha adolescência, condenado a essa violência dilacerante que representou enquanto jovem - a perda do grande amor.

Em vez da morte rápida e da deslumbrante melancolia de Nova Iorque envolvida num lençol de neve, assistimos agora a uma lenta sequência de altos e baixos, da esperança nas terapias experimentais ao desespero da proliferação do tumor. Como em "Love Story", este Ryan O'Neal trinta e nove anos mais velho deita-se na cama de hospital ao lado da sua amada - que não é jovem, e já não tem uma cabeleira maravilhosa, e não vai morrer depressa, nem sequer vai dizer: "Amar é nunca ter de pedir desculpa", porque, tal como ele, já pediu milhares de vezes desculpa e, tal como ele, nem assim ganhou coragem para deixar de amar ou de querer viver mais um dia. Farrah Fawcett deixou-nos em herança o remake melhorado de "Love Story", com um Ryan O'Neal desta vez inesquecível. E um retrato da beleza verdadeira e da elegância autêntica, que é a de agradecer cada minuto de vida com um sorriso inteiro.