28 maio 2007 14:52
28 maio 2007 14:52
Nascer grande, nascer maldito
Num conto, Charles Dickens descreve assim um manicómio: "Há aqui longos corredores e muitas portas."
E na emotiva economia da descrição do hospício pode subentender-se, friamente, o relatório do que de singular se passa na cabeça do sujeito internado. "Longos corredores e muitas portas" é uma bela frase, cheia de possibilidades para os sentidos e para as mais diversas associações.
A mim, por exemplo, faz-me lembrar a jogada completa do golo marcado por Diego Armando Maradona à Inglaterra no Campeonato do Mundo de 1986.
É bem mais fácil retratar de uma assentada, em poucas e gloriosas palavras, numa só imagem, um manicómio e o cérebro de um louco, do que tentar descrever o desplante com que o "capitão" da selecção argentina pegou na bola, ainda no seu meio campo, e passando por longos corredores e por muitas portas, simbolizadas em oito jogadores ingleses, ou nove, contando com o guarda-redes, a última das portas, fez um golo que revolucionou a tal ponto o conceito de "génio" que, ainda hoje, milhões de adeptos em todo o mundo consideram, relutantemente, que qualquer outro jogador talentoso de geração mais recente não passa disso mesmo, de um mero "talentoso". Porque génio, génio houve só um.
Ao colocar a fasquia tão lá em cima, Diego Armando Maradona conheceu as agruras dos artistas que vivem adiantados no tempo, embora ninguém de bom senso se deite a adivinhar quando chegará esse tempo que pudesse apanhar e acompanhar com naturalidade um artista como este. Porque, se tudo o que nasce grande nasce maldito, El Pibe de Oro nasceria sempre maldito, essa é que é a verdade. Há, no entanto, quem não goste de Maradona. Trata-se de uma questão política e religiosa. Não suportam que os pobres de Nápoles lhe chamem Deus e tenham erguido igrejas em seu nome como agradecimento dos dois campeonatos que lhes ofereceu. Mas este não é o problema de Maradona.
O problema do mundo com Maradona é ele ser um sobrevivente de si próprio, quando, por uma questão de utilidade sociológica, já devia ter morrido. Estando vivo não serve de exemplo contra os excessos, pelo que não serve nenhuma propaganda a não ser a sua. Longos corredores, Diego Armando! E muitas portas, também.
É preciso ser-se argentino
Gosto de todos os argentinos excepto do Maradona. Ou então o Maradona incarna um tipo de argentinidade que eu não conheço nem quero conhecer uma argentinidade que requer ser-se argentino para apreciar.
De dentro das famílias, das turmas e das culturas desportivas, há sempre uma grande simpatia pelos indivíduos baixinhos, jeitosos, lutadores, valentes e malandros. Sabe bem ver os pequeninos a fazer gato-sapato dos grandes, sejam eles futebolistas ricos, altos e loiros ou os mais terríveis problemas humanos. E Maradona conseguiu sempre dar a volta a tudo o que lhe apareceu à frente. Mas vistos de fora, quando se é a parte ofendida, gozada e reduzida à insignificância como são todos os países que jogaram contra Maradona e todas as pessoas que não conseguiram conquistar vícios bem menores , esses pequenotes atrevidos e habilidosos já não têm a mesma graça. Maradona gozou abertamente com os ingleses numa altura em que a Argentina ainda não tinha resolvido as suas submissões anglófilas. Com o golo "Hand of God" reconquistou definitivamente as Malvinas. Não tanto com o golo mas com a atitude: uma rara mistura de desconsideração, lata, batota e arrogância. Até hoje é o único antídoto que se conhece para a civilização britânica.
Se fosse argentino, adoraria Maradona por outra razão libertadora. É que a snobice portenha vai além das lealdades aristocráticas para com a fina Europa colonizadora: alinha no desprezo de Buenos Aires pelo resto do país, que não é pequeno. E, mesmo dentro dessa festa de altivez, entra alegremente no campo da luta de classes. Esta guerra entre soberba e rancor é bem expressa pela rivalidade entre o River Plate (queques) e o Bocas Juniores (índios). Antes de Maradona furar as barricadas, essa luta de classes conduzia-se de maneira muito inglesa e civilizada ou seja, fingindo que não existe. A partir de Maradona, soltou-se de vez e descobriu os prazeres da sinceridade e da raiva descarada. Foi preciso um pé-descalço do Bocas para os argentinos redescobrirem a argentinidade de uma forma não-francesa, não-britânica e não-italiana. Ou talvez ainda mais italiana.
Maradona é o Martin Luther King do futebol argentino. E nós estrangeiros, infelizmente, somos os tiranos esclavagistas que foram lançados para a miséria pela abolição. Em tudo o que diz respeito a Maradona, é pena pertencermos a outros países. E é por isso que é impossível gostar dele.