16 novembro 2009 8:00
Os pedintes de porta são diferentes. Têm vergonha e pedem desculpa de estarem ali de mão estendida.
16 novembro 2009 8:00
Estão de volta. Os pedintes de porta em porta. Aparecem pelas manhãs de domingo, com toques hesitantes na campainha. Muitos não lhes abrem a porta e enxotam-nos de dentro das casas com um seco 'o que quer?' E não esperam para ouvir a resposta. Ninguém diz 'tenha paciência', como dantes. Responder àquela pergunta é embaraçoso. Os pedintes deixaram de se usar. Estavam, como outras espécies, extintos. Ou convertidos em sem-abrigo e excluídos, para a estatística. Os sem-abrigo têm o seu poiso, as entradas dos bancos, das repartições do Estado, as calçadas das ruas, os bancos dos jardins, os becos da cidade. E não pedem à porta, ou porque estão para além do acto de pedir ou porque não têm tino para isso. Nem gostam que as pessoas se aproximem deles, e as pessoas, sentido o cheiro a urina e matéria suja, fogem a sete pés. Os pedintes de porta são móveis e são mais ou menos sãos, estão limpos, têm uma casa. São diferentes. Têm vergonha de pedir e a primeira coisa que fazem é desculpar-se de estarem ali de mão estendida. Explicam a situação. São reformados ou desempregados. São velhos sem reforma. São mulheres sem família. Se não precisassem de comer não estariam ali. Têm de comprar medicamentos.
Nos últimos meses vários me tocaram à porta. Um homem que tinha sido despedido. Outro que não tinha "apoios" e caíra fora da malha do sistema. Um terceiro que adoecera e não tinha dinheiro para se tratar. Apresentavam-se e pediam que lhes arranjassem um trabalho qualquer. Biscates, limpezas, oficinas. Ou uma esmola. Andar de porta em porta não é um meio fiável de arranjar emprego porque as pessoas têm medo de abrir portas a desconhecidos. Os que conseguem vencer a barreira da porta da rua e tocar nas campainhas dos andares sabem que os espera um berro ou o silêncio. Ninguém fica a ouvir a história e muito menos com ela se comove. Os mais ricos vivem isolados nos seus condomínios com garagens e seguranças e viajam com os vidros dos carros subidos. Nunca se cruzam com gente desta. Os novos pobres pedem aos remediados, que estão acima na cadeia de alimentação. Os remediados encolhem os ombros, têm os seus problemas, o Estado que se ocupe.
E as mulheres. Uma mulher diz que não tem quem a ajude. Depende da caridade de estranhos. Chora por trás de lentes tão grossas que não deixam ver os olhos. Umas calças de veludo coçado, que não lhe assentam bem, parecem emprestadas. E um casaco de fazenda demasiado curto. Uns sapatos de atacador. As calças foram dadas, parece que eram de um rapaz. O casaco também. Os sapatos? Não se lembra. Não tem reforma. Tem uma pensão "pequenina". Nunca tratou "dos papéis". Uma sobrinha tomava conta dela e a sobrinha morreu. O marido da sobrinha e os filhos acabaram com isso. É doente, doenças da velhice e da tristeza. Vê mal. Pega num saco de plástico com um nó nas alças e desata-o. Diz que tem fome. O saco tem dentro umas maçãs e uns pães velhos como ela. O que lhe vale é a igreja, onde às vezes lhe dão de comer e roupas usadas. Vive sozinha na cidade, uma "casinha que era dela e do falecido marido", renda antiga, não sabe como pagar os remédios que o médico receitou. A sobrinha é que tratava de aviar as receitas. É semianalfabeta. Não sabe para onde se há-de virar. E o dinheiro não chega. Disseram-lhe que se pedisse sempre ganhava algum. Não tem coração para aquilo. Aqui, na palavra coração, começa a chorar. Estreou-se há dias. As pernas doem. Se fosse mais nova ajudava. Há muitos anos que não via uma mendiga a mostrar um saco com pão lá dentro. A última vez que vi esta cena à porta acho que ainda se usavam sacos de pano para o pão.
Há mais histórias assim, monótonas. A mulher a quem tiraram a casa. Quando voltou do hospital, o senhorio disse-lhe que perdera o direito a ela porque não tinha pago a renda. A renda era paga em mão. Não sei o que fazer. Não sei onde dirigir-me. Não sei o que faço aqui, querem todos dizer. A incapacidade de perceber o mundo onde ainda vivem. Os computadores e os analfabetos coexistindo no mesmo espaço e tempo. Os mais novos andam a entregar publicidade à porta. Tocam à campainha agressivamente, atiram os folhetos para o chão em protesto contra as portas fechadas. Os mais velhos pedem e levam com a porta na cara. Outros andam de noite. O monte de lixo deixado junto dos contentores de reciclagem é passado a pente fino. Um homem revista com método os caixotes dos restaurantes, à cata de restos. Houve um tempo em que esta gente quase desapareceu, apanhada pela prosperidade, que é directamente proporcional à bondade. A crise não gera dadores. Isto está mal para todos, ouve.
Texto publicado na edição do Expresso de 14 de Novembro de 2009