9 novembro 2009 8:00
No mundo em que vivemos é provável que o Muro se torne apenas uma efeméride. Uma memória.
9 novembro 2009 8:00
Sei onde estava no dia em que o Muro caiu. Estava no Expresso, no velho prédio da Duque de Palmela; a fechar a Revista, de que era editora. O Joaquim Vieira, director-adjunto, estava na África do Sul (por causa da queda do avião onde viajava João Soares) e o director José António Saraiva estava a fechar o primeiro caderno. Quinta-feira. Foi um daqueles dias em que um jornalista sente que está no sítio certo. Não tínhamos ninguém para viajar de repente para Berlim; eu não podia largar tudo e apanhar um avião. Não havia lugares nos voos para Berlim. Num mundo sem computador nem internet, sem telemóvel e sem televisão por cabo nem satélite (a CNN só passaria a ser obrigatória depois da primeira Guerra do Golfo), saber notícias significava ver televisão, ouvir rádio e ler os despachos das agências internacionais que chegavam por telex. No Expresso havia uma televisão com os dois canais da RTP. Escrevíamos à máquina.
O meu entusiasmo não era partilhado pelo JAS, embrenhado nas questiúnculas da política nacional. Disse-me que a queda do Muro não era notícia de primeira página. Muito menos manchete. Discutimos. Depois de vários telefonemas, consegui apurar que Sena Santos (RDP) estava em Londres. Pedi-lhe que seguisse para Berlim para fazer a reportagem para a Revista. Passados uns meses, fui a Berlim. Atravessar a cidade do Ku'damm a Berliner Alexanderplatz, atravessar a Porta de Brandeburgo e entrar em Unter den Linden, olhar a Ópera, a Universidade Humboldt, o Hotel Adlon. Ver Berlim aberta, com o soturno edifício da Stasi sem atormentar a paisagem. Berlim, pressentia-se, nunca mais seria igual. O que víamos nesse instante deixaria de existir. E o Muro, arrancado aos pedaços e vendido em bancas, seria uma relíquia.
O "Público", que estava a preparar o lançamento sob a direcção de Vicente Jorge Silva e dos 'dissidentes' do Expresso, perdeu a queda do Muro, com grande pena dos jornalistas. No Expresso, perdi uma das reportagens da minha vida.
A minha geração cresceu à sombra do Muro, filosoficamente falando. O mundo dividido pela Cortina de Ferro era um mundo sob a ameaça permanente de uma guerra nuclear na Europa. A política de blocos dominava não apenas a geoestratégia, dominava a política e o pensamento. O Ocidente livre contra o Leste oprimido representado pela União Soviética e os seus satélites. No Portugal democrático, esta questão ideológica atravessava os principais partidos: o PCP, o PS e o PSD. Não havia uma querela entre liberalismo e socialismo, havia uma querela entre comunismo e socialismo democrático. A queda do Muro prenunciou a mais extraordinária mudança do mundo até ao 11 de Setembro. Reagan dissera a Gorbatchov: deite abaixo este Muro; no dia 9 de Novembro de 1989, o Muro veio abaixo. A URSS implodia.
Nunca vou a Berlim sem visitar Checkpoint Charlie e o Museu do Muro, com o inventário das fugas espectaculares ensaiadas pelos alemães orientais. A Friedrichstrasse tornou-se uma rua elegante, com cafés e lojas de luxo. Para quem viu Berlim dividida, para quem leu John Le Carré, para quem viu os filmes de Fassbinder e depois de Wim Wenders, para quem leu Heinrich Böll, Günter Grass e Hans Magnus Enzensberger, o Muro era o símbolo de tudo o que estava errado na Europa depois da derrota do nazismo. O símbolo da proibição da liberdade e da livre circulação, o símbolo da economia planificada, o símbolo da superioridade moral do parlamento eleito e da economia de mercado sobre o colectivismo forçado. E o símbolo do fracasso de uma ontologia. E de uma metafísica.
Crescemos a ler Marx e Engels e a observar o Muro, os tanques de Praga e Budapeste, os protestos e prisões na Polónia.
Quem visitou Berlim dividida lembra-se da fronteira. E lembra-se dos cães, das correntes, do arame farpado, das torres de vigia, das estações de metro fantasmas, das camas de pregos encostadas às janelas que davam para o corredor da morte, a estreita faixa de terreno entre a prisão e a liberdade. O Muro matou cerca de 200 pessoas. No mundo em que vivemos é provável que o Muro se torne apenas uma efeméride. Uma fotografia. Uma memória. Depois da queda do Muro entrevistei Günter Grass, que era contra a unificação da Alemanha por causa do peso da história e do passado. A Alemanha única era perigosa. E podia ser o despertar do monstro. Não tinha razão. À minha memória dessa data junta-se a imagem de Mitslav Rostropovich a tocar uma suite de Bach no violoncelo, de costas voltadas para o Muro. Perante o silêncio das lágrimas.
Texto publicado na edição do Expresso de 7 de Novembro de 2009