Clara Ferreira Alves

Doutor Jivago

18 junho 2007 8:00

18 junho 2007 8:00

Tenho saudades do tempo em que os filmes tinham histórias com pessoas lá dentro. Personagens com olhos intensos que faziam chorar os espectadores antes do primeiro intervalo. Era o tempo em que a ida ao cinema era uma sessão solene em que toda a família participava, arranjada a preceito e comprando tabletes de chocolate nos "foyers" cheios de retratos de estrelas de Hollywood que sorriam enigmáticas como se não soubessem porque estavam ali, fotografadas ligeiramente de perfil, e com uma sombra de cabelo sobre a cara. A preto e branco. Nesse tempo, as pessoas lembravam-se dos filmes depois de os terem visto e discutiam-nos durante semanas até eles fazerem parte da memória. Era o cinema em todo o seu esplendor. Agora vou ao cinema e esqueço-me logo do que vejo. Oceans's Thirteen, por exemplo, é um filme cheio de truques e bons actores, mas não consigo exactamente perceber a história ou o seu propósito, e as personagens são de cartão, sem espessura. O "script" é tão espertalhão, tão pirotécnico, tão tecnológico e arrevesado, que se torna incompreensível e inútil. Tanto trabalho para quê? Nenhuma emoção atravessa o filme. Quando William Faulkner adaptava Chandler em Hollywood era ainda mais incompreensível e era também inesquecível, do diálogo ao clássico cruzamento da classe de Bacall com a de Bogart.

Esta semana, cortesia de Ted Turner e do seu TCM, consegui rever Doutor Jivago, do grande David Lean, adaptado do romance de Boris Pasternak. Há uns bons anos atrás, ao escrever as palavras "Doutor Jivago" não me sentiria na obrigação de dizer que era adaptado de Pasternak ou de explicar que ele ganhou o Nobel da Literatura. As pessoas liam Doutor Jivago, que tinha pulado o abismo entre a grande literatura e o entretenimento popular, coisa que hoje nenhum Crichton ou Dan Brown consegue. Osip Mandelstam ou Anna Akhmatova não eram lidos mas, Tchekov e Tolstoy, Turgueniev e Dostoievsky eram. E Pasternak. A adaptação de Lean, que considero soberba e comovente, com a banda sonora de Maurice Jarre no tema de Lara, teve muitos detractores na época, os cegos do costume, e é um filme, como Lawrence da Arábia, que se pode permitir tomar todas as liberdades em relação ao original porque o resultado é o da exaltação do original. Quem não leu Doutor Jivago sente que leu Pasternak depois de ver Doutor Jivago. O "script" de Roberto Bolt vai desenrolando a tragédia de Yuri, Tonya e Lara, o triângulo amoroso da intriga, com a I Guerra Mundial, a revolução bolchevique, a guerra civil russa e o estalinismo como cenário e moldura épica. Algumas personagens têm traços conhecidos de personagens reais, como Strenilkov, o estudante Pasha Antipov casado com Larissa, que faz lembrar Leon Trotsky (e no livro remetia mais para Dzerzhinsky). Lean, como sempre, filma projectando a figura humana no plano imenso da paisagem natural, usando a escala de uma formiga cravada ao flanco da montanha. Ninguém filmou o Inverno, o deserto gelado da paisagem dos Urais ou o interior do palácio de gelo que é a datcha de Varykino, assim, tal como ninguém filmou o deserto vermelho como ele. Imagina-se o que faria David Lean se alguma vez filmasse no Afeganistão e no Iémen a história de Bin Laden. As personagens de Lean são figuras arrebatadas pelos ventos da História, vítimas e actores na catástrofe que acompanha a formação e o desmantelamento de impérios. Um dos últimos planos de Doutor Jivago é o da figura de Lara em desaparição, projectando-se contra o ângulo da sombra um muro cinzento onde avulta o formidável Estaline. Lara morreria anónima, num "goulag" anónimo, num país que proibira os seus servos e os seus heróis de terem vida privada, como diz Strelnikov. Amor em tempo de guerra. O Ocidente europeu, e a América, nunca compreenderão aquilo que Yevgrav, o meio-irmão de Yuri, e um bolchevique, chama "a nossa amaldiçoada capacidade para o sofrimento", que um dia faria os sovietes vencerem, 27 milhões de mortos mais tarde, o nazismo. Para o sofrimento e para o esquecimento, constituintes da alma russa.

O romance de Pasternak, proibido na Rússia até aos anos 80, sendo lido em "samizdat" (apesar do Nobel em 1958) é largamente um romance autobiográfico e muito de Boris vive em Yuri, o médico idealista que escreve poemas. Lean arranjou sempre os actores certos para os seus heróis, e Omar Sharif, o Sherif Ali companheiro de Lawrence, é um homem dividido entre os olhos de Lara, a amante, os líquidos olhos de metal de Julie Christie, e os olhos escuros e bondosos de Tonya, Geraldine Chaplin, a mulher. O filme é pungente sem nunca ser sentimental, dramático sem ser piegas. No desfecho da tragédia pessoal persiste uma secura que é dada por aquela paisagem de gelo onde a figura humana se dissolve na brancura do Inverno russo, mortal adversário de todos os exércitos. Já não se fazem filmes assim, e acho que nunca mais se farão. O filme só foi visto na Rússia em 1994, em atestado da estupidez totalitária.



unica@expresso.pt