13 outubro 2008 8:00
13 outubro 2008 8:00
Original pela narrativa, pela forma, pela linguagem, pela história, pelas personagens, pela utilização do tempo e do espaço, pela medida certa do que deve ficar e do que deve sair da frase até ela ser considerada perfeita. Uma história da rua e das estrelas que o teatro revelou como um lugar sem pecado original, um lugar isento da convenção literária ou plástica. Um lugar de liberdade absoluta do verbo, graças ao Nuno Artur Silva e ao António Jorge Gonçalves, dois devotos que reinventaram Molero no palco. O Que Diz Molero foi assim um livro e uma peça que não cabem em categorias, uma espécie de vanguarda estética, a última coisa que o Dinis esperaria. A humildade cívica, moral e intelectual que fazia dele um grande ser humano e um grande conversador, nunca conseguiu conviver com a modernidade daquela escrita, rara nos realismos da altura.
Quando o conheci, nos idos de 80, o Dinis andava triste. Morava sozinho numa casa modesta de uma avenida de Lisboa, tinha ficado viúvo, não sabia se voltaria a escrever. Só sabia escrever quando lhe apetecia. Era, como o José Cardoso Pires, escritor bissexto, mais do que bissexto, escasso, escassíssimo. Era então um homem de cinquenta e tal anos, encurvava os ombros ao falar e tinha no olhar uma sombra de malícia que remetia para os apartes da conversa, o sumo da coisa. O Dinis foi sempre um grande comentador das pequenas coisas da vida, dos pequenos acasos, das pequenas picardias, dos pequenos encontros. Eram um modo de viajar, não tinha dinheiro para mais. E por trás estavam os filmes e os policiais, a banda desenhada, em que ele lia a realidade a cores e preto e branco. O cinema era uma paixão, e o Dinis lembrava-se sempre de um filme a propósito, e havia uma tela de cinema e uma cena de cinema, com actores de cinema, no dia-a-dia da sua obscuridade. Às vezes, penso que ele viveu assim, nessa obscuridade desejada, porque se sentia sentado num cinema, à espera da luz do ecrã e que o filme começasse. Um dos seus grandes amigos, já morto, era o Pedro Bandeira Freire, o homem do Quarteto. Outro foi, durante uma época, António Lobo Antunes, que ouvi chamar ao Dinis "o sétimo irmão". E outro Cardoso Pires. Depois afastaram-se, a amizade entre escritores de qualidade tem uma cauda comprida e muito pisada. Falou sempre deles com admiração e estima, eram os seus companheiros literários mais próximos, escritores de uma cidade apinhada de personagens por descobrir, personagens populares e destituídas das cortesias da aristocracia literária.
Dinis Ramos e Machado nasceu em Lisboa e foi um homem de Lisboa. Habitou a cidade como uma personagem, não intermediando a realidade com subtilezas formais, antes a moldando até a tornar linguagem e literatura. É isto um escritor, dizem os manuais. Alguém que transcende a sua experiência e a torna universal. A Lisboa de Molero é uma Lisboa mítica, onírica, poética e profundamente real. Doentiamente real. As personagens de Molero reluzem num quotidiano cinzento. A única liberdade é a da imaginação, que se solta com um furor anárquico. Dinis Machado nasceu a 21 de Março de 1930, numa primavera de Salazar. Viveu boa parte da vida nesse regime que deu bons escritores, e viu os tempos e os costumes mudarem-se até ao fim das grandes proibições existenciais. Hoje, tudo ou quase tudo é permitido, tudo ou quase tudo é mostrado, e nesse conhecimento pornográfico do mundo, instantâneo, os pormenores perdem-se e a atenção a eles também. As pequenas coisas. "O universo machadiano", disse o Fernando Assis Pacheco, "não podia ser contado por outrem".
Com a passagem dos anos, o Dinis foi esmorecendo. Nunca mais escreveu um livro como Molero, de 1977, e talvez ele achasse imperdoável não o ter feito. Talvez não. Os amigos elogiaram-no e partiu sozinho. A Última Fronteira, como no Molero. Foi um Mr. "DeLuxe" e um homem livre que nunca perdeu a inocência. E isto de poucos escritores pode ser dito.