22 setembro 2008 8:00
22 setembro 2008 8:00
A Cova da Moura é um bairro clandestino filho da revolução do 25 de Abril. O bairro nasceu nos anos 60, numa cova de uma pedreira no cimo de uma colina desabrigada e batida pelo vento. Os primeiros moradores rapidamente se viram acompanhados pelos retornados das ex-colónias, uma vaga de gente vinda de Angola e Moçambique, brancos e negros decididos a refazer a vida em Portugal. Nas décadas seguintes, a Cova da Moura foi recebendo imigrantes de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, e da Europa de Leste, estes em menor quantidade. Hoje a população tem cerca de 60% de imigrantes africanos, para uma população que ronda os seis mil habitantes, a acreditarmos no texto da Associação Cultural Moinho da Juventude. Basta fazer "google" à Cova da Moura e ficamos a saber muito sobre um bairro que os portugueses do resto do país, sobretudo os do centro de Lisboa, nunca visitam. O que não descreve é a realidade física da Cova da Moura e da sua população (que visitei). Pelo bairro andou Susan Meiselas e andou a Agência Magnum, e alguns filmes e documentários têm usado a Cova da Moura como cenário e como personagem, mas a imagem acaba por tornar romântica a realidade. Ou simplesmente dramática. Ou vagamente poética.
O bairro faz-se e desfaz-se em ladeiras íngremes, com ruas alcatroadas e com casas razoáveis, e com ruas de poeira e casebres de cimento e madeira que parecem abandonados na paisagem como detritos. Avista-se a malha suburbana em todo o seu esplendor, da Brandoa à Damaia, da Buraca à Amadora. A Câmara Municipal da Amadora é a responsável pelo bairro. A malha suburbana é uma manta de retalhos interrompida por torres e raras simetrias, casas e mais casas, a esmo, sem uma mancha verde, sem um jardim, sem uma árvore. Uma nova cidade e um novo país nasceram aqui, dos restos do império. Uma paisagem que o escritor António Lobo Antunes tratou de modo singular e usou como personagem dos romances, humanizando-a e imortalizando-a. Um país pós-colonial, abastecido pelo fim da guerra e reabastecido pelo regresso das caravelas.
As pessoas da Cova da Moura dividem-se em dois grupos, grosso modo, e esses grupos estão em guerra. O primeiro grupo é o da primeira vaga dos anos 70 e 80, gente que construiu as casas, reclamou para o bairro a água, a electricidade, o telefone, a recolha do lixo; gente que paga os impostos e contribuições autárquicas e esperou todos estes anos para ver as casas legalizadas. Construíram um centro cultural, com biblioteca e creche, com computadores doados e salão de baile, fizeram uma associação de moradores, e tentaram viver com civismo no lugar que lhes coube no diminuído rectângulo nacional. Muita desta gente vinha dos grandes espaços abertos de África e deve-lhes ter custado redimensionar a existência em meia dúzia de metros quadrados. São cidadãos inteiros, com o desejo formulado da dignidade que a circunstância lhes parece negar. Existem raras árvores nos quintais e certas ruas parecem as de um bairro modesto. A ilusão não dura. Um passeio com os habitantes mais antigos da Cova da Moura desvenda o segundo grupo, o dos traficantes de droga. Uns, vieram corridos do Casal Ventoso, na primeira fase em que o Casal Ventoso parecia demolido e exangue, e não moram ali. Vendem droga nas esquinas e recrutam jovens africanos, espalhando o medo com os assaltos e as armas. Duas ruas são seu poiso habitual. Numa delas, a Rua do Moinho, está estancada na paisagem uma ruína do moinho de vento que dá o nome. Outros são do bairro, imigrantes recentes, pobres, desempregados, que ignoram a vida da comunidade e desprezam a pertença, arregimentados pelos traficantes maiores e vivendo da delinquência. A Igreja Católica, que continua a ter uma acção mobilizadora e de ajuda nos bairros problemáticos, não conseguiu levar estas ovelhas para o seu rebanho.
Os dois grupos olham-se com suspeita e o grupo da primeira geração, mais entrado em idade e nostálgico de uma ordem e uma paz que a nova vaga de criminosos não autoriza, pede a intervenção policial salvadora. Queixam-se do medo e da privação da liberdade dentro das suas casas, pela noite dentro, quando o tráfico controla as ruas. A polícia faz muitas operações no bairro.
Circulam teorias sobre o destino da Cova da Moura. Uns dizem que vai ser reestruturada e reabilitada, o que os velhos habitantes mais querem. Querem permanecer nas casas e usufruir dos direitos. O direito a ter uma casa sua num bairro legal. Outros dizem que vai ser demolida e transformada num projecto imobiliário e os habitantes realojados. A segunda hipótese assusta o grupo dos que construíram a Cova da Moura e a dotaram de um espírito social, de uma consciência de grupo, e que não querem ser movidos como mobília velha para um bairro social, isolado e triste. Mudar de vida outra vez. Brancos e negros ali vivem sem preconceito racista nem querela étnica, o grande triunfo da Cova da Moura. Como é possível pensar em destruir isto, o grupo, a comunidade de direitos e deveres, a coexistência? A Cova da Moura merece atenção e muito cuidado. É o exemplo de tudo o que pode estar certo e errado nas políticas sociais de integração.