António Pires Lima

Classe média

13 outubro 2008 8:00

13 outubro 2008 8:00

Conta-se que numa recente recepção em Lisboa, oferecida por um bem sucedido empresário nacional, uma distinta senhora do nosso social comentava, entre duas garfadas de lagosta, a sua incompreensão relativamente às vitimas da actual crise financeira: não percebia a preocupação dos políticos com a classe média, dado que eram os ricos, aqueles que detinham fundos e sonantes investimentos nas bolsas, os que viam os seus activos sumirem...

Alguém lá terá explicado o efeito devastador da alta dos juros numa classe média fortemente endividada e a dita senhora voltou a concentrar as suas preocupações na lagosta.

A crise financeira que vivemos é devastadora e atinge todos: ricos, pobres e, sobretudo, remediados. Com uma pequena "nuance" que faz toda a diferença: se os ricos se preocupam justificadamente com a forte degradação das poupanças e investimentos, todos os outros, na actual conjuntura, vêem-se aflitos para pagar as prestações mensais do carro, da casa, da escola dos filhos ou... das últimas férias de Verão.

Com o 25 de Abril, os políticos, irresponsavelmente, garantiram ao povo que o emprego era certo e inamovível. Chegado o euro, as instituições financeiras transmitiram a ideia da eternidade do crédito fácil e barato. Ainda há uns anos frequentei um curso de um mês numa reputada escola de gestão em França onde me asseguraram os melhores professores que, existindo bons projectos, quanto mais endividadas as empresas mais valiam e melhor eram geridas.

Com algum simplismo, admito, este era o espírito um pouco por todo o mundo. Logicamente os portugueses, famílias e empresas, endividaram-se, acomodaram-se e aburguesaram-se. Agora damo-nos conta de que a realidade é bem mais incerta e que andámos todos a laborar numa ficção. Uma classe média endividada em mais de 100% do seu rendimento disponível corre o sério risco de desaparecer com a actual crise financeira.

Um tecido empresarial frágil está ameaçado de falta de liquidez se não puder refinanciar as suas dívidas. Se não existir sensibilidade política para cuidar do tema antevejo uma situação social explosiva em 2009.

Estando a classe política em vésperas de discutir e decidir o Orçamento do Estado de 2009 duas reflexões aqui deixo.

A primeira é que, para atenuar a crise de liquidez que se avizinha, o Estado se organize e financie para pagar a 30 dias todas as dívidas aos privados (incluindo devoluções do IVA). O Estado estaria apenas a cumprir e a dar o exemplo. Uma medida simples como esta talvez fosse suficiente para injectar a liquidez necessária (alguns mil milhões de euros) na economia real e proteger o tecido empresarial português.

A segunda é que se pondere seriamente o objectivo de défice público para 2009. Portugal está em estagnação e irá entrar em recessão. Numa circunstância destas almejar descer o défice para lá dos 2% supõe sacrifícios insuportáveis. Creio que seria mais eficaz e socialmente aceitável reduzir o IRS restituindo poder de compra às famílias. Estaríamos assim a devolver às famílias aquilo que é delas, o rendimento dos seus trabalhos, a zelar pela solvência dos créditos que acumularam nestes últimos anos às instituições financeiras e a estimular a economia real.

PS Já depois de escrito este artigo o PM anunciou que, face à crise, os objectivos de défice para 2009 vão ser repensados. Uma primeira opção sensata que vai ao encontro de uma das propostas que aqui deixo. Espero ainda que, até ao final da aprovação do OE-2009, as outras duas propostas recolham acolhimento. Seriam um bálsamo para as empresas e para as famílias.