António Pires Lima

A receita chamada soberania

19 novembro 2010 0:00

António Pires Lima (www.expresso.pt)

19 novembro 2010 0:00

António Pires Lima (www.expresso.pt)

1 Cara leitora e caro leitor, eis um breve resumo do estado económico da nação: dez anos de estagnação que nos colocam como o terceiro país no mundo que menos cresceu na última década. Temos uma dívida pública que se aproxima dos 90% da riqueza criada anualmente - e atinge bem mais de 100% se incluirmos toda a extensão do sector empresarial público e a responsabilidade assumida pelo Estado com todas as parcerias público-privadas. Soma-se uma dívida privada que se situa em 120% do rendimento das famílias, um Estado que é o 7º do mundo com maior risco de incumprimento financeiro e um país que está em último lugar no mundo no indicador confiança dos seus consumidores (AC Nielsen).

Junte-se a esta receita para a desgraça o sabor amargo de sermos uma das duas sociedades europeias com maiores desigualdades sociais e de termos construído um sistema de justiça ineficaz em que a maioria dos cidadãos não confia. Acrescente-se, como cereja em cima do bolo, o facto de sermos o povo que menos se reproduz, com uma taxa de fecundidade atual que nos conduzirá, se não for invertida rapidamente, a um declínio inexorável. Depois de 36 anos de democracia, a inquietação está na cabeça de muita gente: será este regime reformável?

2 Como em qualquer democracia, os partidos dependem do voto dos eleitores. Quem vota gosta de acreditar em ilusões. Não há memória de um político em Portugal ter ganho eleições dispensando promessas irrealizáveis em campanha e assentando apenas as propostas num discurso de verdade, com um apelo a uma ética de esperança baseada no essencial: mérito, austeridade e, sempre que necessário, sacrifício em nome das futuras gerações. As eleições ganharam-se 'vendendo' o contrário: facilitismo, direitos sociais crescentes e uma cultura consumista que gasta hoje comprometendo os impostos das gerações futuras.

Será possível que tudo mude em próximas eleições? Gostaria de acreditar que sim. Porque, de outro modo, estaremos condenados a ser governados desde o exterior. A verdade é que o Orçamento do Estado para 2011 não é do primeiro-ministro eleito, engenheiro Sócrates, nem tão pouco daquele que se anuncia como o seu sucessor, doutor Passos Coelho. Este é um orçamento necessário e até inevitável porque nos foi imposto pelos credores que vão garantindo o financiamento da economia a cada quarta-feira. E é, sobretudo, o orçamento da senhora Merkel que, como consequência da crise, põe e dispõe hoje em toda a Europa sem ter precisado de disparar um tiro.

Na ausência total de credibilidade de qualquer outra promessa, as próximas eleições talvez venham a ser ganhas com uma nova receita: a da soberania. Não estou a defender uma soberania ultrapassada, que nega o mundo global em que vivemos, própria dos partidos de protesto da esquerda vencida com a queda do Muro de Berlim. Pelo contrário, proponho uma soberania que apela à responsabilidade e a uma cultura de mérito, que comece por convencer os portugueses a pagarem as dívidas acumuladas e a viverem apenas de acordo com a riqueza que conseguem criar.

Será que esta 'estranha' noção de soberania pode dar votos? É que se não der, este regime já não será reformável.

Texto publicado na edição do Expresso de 13 de novembro de 2010