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Crónica

2. Palavra da semana: calote

“Dar um calote”, “passar um calote” ou “pregar um calote” – confesso que prefiro esta última porque imagino o caloteiro a pregar o calote na porta do estabelecimento com a atrevida seriedade de um Martinho Lutero a pregar as suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg – era uma arte ao alcance de poucos

Manda a ética e aconselham as boas maneiras a que não se bata a quem está caído. À ética e às boas maneiras e, mais do que isso, a esta suave caridade cristã, direi: depende. Em primeiro lugar, não encontro particular mérito em bater a quem está no alto mas lá chegou a duras penas e sem favores. Depois, não considero especialmente censurável uma biqueirada, um carolo ou um calduço a quem acabou de se estatelar tendo, antes disso, gozado uma vida de imerecidas e fraudulentas delícias.

São inúmeros os exemplos de poderosos caídos em desgraça que, ao servirem de valoroso saco de pancada, contribuem para desanuviar o ambiente carregado de injustiças e saciar o desejo popular de ver realizada a máxima do “cá se fazem, cá se pagam”, tantas vezes prometida e tão poucas cumprida. Quem poderá culpar o rústico pela alegria de ver os maus, por uma vez que seja, passarem no mundo graves tormentos? Quem ousará criticar o simples que se consola com o cruel cheirinho de liberdade com que a justiça portuguesa torturou
Domingos Duarte Lima?

Povo que não vai ao teatro tem de procurar a catarse noutras paragens e não me parece que o infortúnio dos poderosos seja um mau lugar para iniciar a reconciliação com o desconcerto do mundo. E nem tem de ser por solidariedade com a pobre D. Rosalina Ribeiro, assassinada a sangue-frio e abandonada num descampado lúgubre (todos os descampados são lúgubres e os descampados nos arredores de Saquarema não são exceção) – não é preciso recuperar a possibilidade de homicídio para antipatizar com a figura. A mim basta-me lembrar o aspeto sinistro do ex-político a executar (perdoem-me a escolha do verbo) uma peça, creio que de Chopin, ao piano. Ainda hoje, essas imagens televisivas aparentemente inócuas me fazem estremecer de um terror absoluto.

Ou então, passando para razões mais corriqueiras, lembrar os golpes (financeiros, meus amigos, financeiros) e as jogadas manhosas em que este antigo acólito do “prof. Cavaco e Silva” (cito, de memória, Jonas Malheiro Savimbi) se especializou e de que os jornais
continuam a dar notícia, surpreendendo até o cidadão que se julga mais informado do que a média. Foi na primeira página de um desses jornais que respiguei a palavra da semana, “calote”, em relação a uma dívida de Duarte Lima ao Estado português que ultrapassa os 20
milhões de euros.

Não vou sujeitar o leitor aos pormenores de ativos tóxicos e restante bicharada que a nossa iliteracia financeira não abarca e conto apenas este facto que dá a toda a história um requinte artístico, uma dignidade calvinista: a última vez que Duarte Lima abateu (não resisto) parte da
dívida ao Estado foi em 2015, com a venda do quadro A Procissão do Casamento, do pintor flamengo Pieter Brueghel, o Jovem. Pergunto-me: que círculo do inferno dantesco ou que nesga do Paraíso estarão reservados aos que pagam prosaicos calotes com o pecúlio da venda de um Brueghel?

Regressemos, pois, ao calote, palavra que, em tempos antigos, se aplicava geralmente aos clientes do Zé do Talho (esclareço que o talho do Zé era também mercearia) que, por imprevistos ou congeminação matreira, deixavam de saldar as dívidas acumuladas graças a essa instituição popular de crédito comercial que era o “fiado”.

“Dar um calote”, “passar um calote” ou “pregar um calote” – confesso que prefiro esta última porque imagino o caloteiro a pregar o calote na porta do estabelecimento com a atrevida seriedade de um Martinho Lutero a pregar as suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg – era uma arte ao alcance de poucos. Caluniado por todos, mais pelas costas do que na cara, o caloteiro era, ainda assim, alvo de uma envergonhada admiração: o opróbrio que sobre ele recaía não apagava a sua temerária libertação da tirania dos comerciantes. E o certo é que nunca vi um caloteiro bater com os costados na cadeia pelos calotes pregados.

Menos sorte, está visto, teve Duarte Lima porque à arte do calote juntou os pecados da ganância, da avareza, do roubo e, presumivelmente, do homicídio, que lhe dão direito de entrada e assento em diversos círculos infernais. Enquanto isso, no estabelecimento prisional, sem um piano para exercitar os seus dotes musicais, terá de se contentar com o marfim das pedras de dominó. O que faz sentido pois é daí – do nome dado pelos franceses à pedra que não podia ser jogada, a cullote – que vem o nosso portuguesíssimo calote, deplorado por zésdo-talho, pregado por audazes zés-do-telhado de piso térreo.

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