Crónica

Enganaram-se: furaram a parede da minha casa quando estavam a demolir o prédio do lado

4 julho 2019 19:00

“O estrondo, o medo, a raiva, a impotência. A incredulidade de ver aquelas garras de metal amarelo com mais de meio metro de largo dentro da minha casa. A demolição do prédio ao lado partiu a parede do meu andar. No meu andar, na casa onde vivo há 30 anos. No coração de Lisboa”: crónica de Manuela Goucha Soares, jornalista do Expresso. E sim, isto aconteceu mesmo

4 julho 2019 19:00

Ao primeiro grande embate tive medo que a parede da casa de banho me caísse em cima. Fiquei quieta, a olhar. Respirei. Estava tudo igual. Na terça-feira, 2 de julho, liguei a rádio na TSF como faço todas as manhãs. Desliguei cinco minutos depois; o barulho da demolição do prédio ao lado – para ser rigorosa, dos três edifícios de betão da década de 60, construídos como que em harmónio ao lado do meu – era ensurdecedor. Estava pior do que todos os dias horríveis do último mês.

Cinco minutos depois, novo estrondo, mais ligeiro do que o primeiro. Fui ao quarto – o barulho viera daí – e vi umas garras amarelas dentro da minha casa. A parede dupla que separa o meu prédio do que está a ser demolido acabava de ser quebrada, destruída. Parcialmente, dirão os entendidos em obras. Eu, que sou leiga, só vira o braço de uma retroescavadora dentro do meu quarto. Não me lembro se corri para a janela aos gritos, se fui a correr procurar o papel onde apontara o nome do engenheiro-chefe da obra.

Sei que fiz as duas coisas e que tremia como nunca tremi. Sei que de repente vejo um operário a espreitar pelo buraco sem perceber bem o que tinha acontecido. E sei que o mandei chamar o chefe da obra. Sei também que apareceram outros três homens a falar comigo do lado de fora do buraco que deixara parte da minha casa com ligação direta ao que outrora foi o lado direito de um prédio onde viveu gente até dezembro passado. Um prédio construído há 55 anos, com elevador e vários apartamentos totalmente renovados.

A ameaça ao sossego e tranquilidade no bairro pairou no ano passado com a venda em bloco dos edifícios do lado. Andava atenta, a farejar o que iria acontecer. Alguns vizinhos já tinham saído há uns anos – com a lei das rendas do Governo de Passos Coelho. Ficaram os mais velhos, os que tinham ido para o prédio em 1963/64, e que tinham todos mais de 70 anos. Um deles tem 89 e deu-me uma lição de vida com a forma inteligente como lidou com a saída compulsiva da casa onde vivia há 57 anos.

As obras do enorme condomínio que consta ser de luxo começaram; com elas veio o pó que nos impede de abrir janelas e estender roupa. E veio o barulho. As sardinheiras do pátio da senhora do primeiro andar foram para o lixo e as escavações começaram. Nessa altura ainda tinha esperança de que remodelassem apenas o interior. Mais tarde soube que só ficaria a fachada que dá para a rua; a fachada tardoz e o interior iriam abaixo. Tudo em betão armado, três prédios de placa.

Não devo estar a usar os termos certos das obras, mas pouco importa. Uso os termos que qualquer leigo percebe. O responsável pela obra de demolição informou-me que as garras que vi dentro da minha casa não pertenciam a uma escavadora mas a um robô que faz demolições.

Fiquei a saber da pior maneira que uma demolição que deveria ser feita à mão, para não pôr em causa a segurança de moradores e dos apartamentos do prédio ao lado, estava agora a ser feita por um robô.

Continuava a tremer. De fúria, de raiva, de impotência. Pelo meio tinha descido e subido vários andares a pé à procura de algum vizinho que estivesse em casa e me servisse de testemunha.

A vizinha de baixo, que tem idade para ser minha mãe, só me dizia para ficar calma. Eu devia estar vermelha, sentia o coração a bater como nunca senti.

Mandei tapar o buraco pelo lado da demolição. O resto, a minha parede, continua destruída. Sei que é apenas uma parede, que será reparada de uma forma ou de outra. Mas o que ninguém pode reparar foi o medo, a sensação de ataque, de invasão da casa, de quebra de confiança que eu senti.

As únicas certezas que tenho é que aquele robô nunca deveria ter andado perto da parede meeira com o meu prédio, e que o inferno do barulho vai até meados de 2021. De resto, só dúvidas, receios. E sei que não estou sozinha. Mal cheguei ao jornal ouvi o relato de uma história semelhante passada há 10 anos. No coração de Lisboa. Na cidade onde sempre vivi. E onde me senti atacada na casa que escolhi.