Verifica-se um fenómeno interessante na indústria da música em Portugal e não só com o regresso em força dos vinis. Nos últimos anos e ao fim de algumas décadas, voltaram a ser fabricados e o número de vendas ultrapassa largamente o dos CD, que, arrisco referir, estão perto da via de extinção em Portugal. Nesta altura e a partir do título deste artigo, qualquer paralelismo que o leitor mais atento possa achar que eu estou a fazer com um Cavaco vinil e um Luís Montenegro em formato CD, com efeitos no eco e futuro do PSD, pode ser manifestamente exagerado em relação à condição política do segundo. No entanto, quem sou eu para que essa deixe de ser uma primeira ilação a retirar-se aqui…(?)
Continuemos, porque é à luz destes lados A e B dos discos de vinil que me interessa analisar o mais relevante do conteúdo do discurso do ex-Presidente da República. Ora, começo por constatar que quase sempre o lado A neste tipo de discos caracteriza-se pela apresentação das canções mais comerciais dos artistas. Cavaco raramente foge à regra e a “democracia amordaçada” - mal, oportuna, apressada e injustamente aplicada como se veio a provar e no meio de um contexto complexo - do disco de 2021 foi bem substituída pela atual “degradação política”, sintoma para o qual este governo tem inequivocamente contribuído através dos últimos casos, as lutas partidárias expostas no executivo e o surrealismo de tudo aquilo que ainda falta apurar no Ministério das Infraestruturas. Estando naturalmente a TAP como pano de fundo de tudo. Pode-se dizer que foi um hit fácil, mas, momentaneamente ou não, bem certeiro de Cavaco.
“O PSD como única alternativa credível ao poder” também entra nesta categoria e a letra é instrumentalmente interessante num primeiro impacto, só que Cavaco acaba por prosseguir numa melodia menos arriscada, ignorando alguns acordes e o dissecar das nuances que podiam e deveriam ter dado mais profundidade à música. Um pormenor que já caracteriza o ex-Presidente, colocando-o desde logo, longe de um patamar eventualmente alcançável para quem governou tantos anos o país.
Seja como for, passemos ao essencial do lado B, que é onde os artistas costumam transmitir o seu lado mais diferenciador e espontâneo. Também aqui, Cavaco procurou não fugir a isso, mas os sinais são contraditórios e é importante que a incoerência em excesso não seja confundida com a autenticidade. Quando a certa altura aparece o refrão “A palavra socialista é só um slogan,” Cavaco não deixa de ter razão e desde a gaveta de Soares às metas económicas da União Europeia e o caminho para lá chegar que, tal, se tornou inequívoco.
A social-democracia, mesmo com acordos parlamentares de circunstância à esquerda e a meta das contas certas, redução da dívida pública, entre outras, nunca poderia fazer com que um suposto ‘socialismo’ a que muitas vezes se referem uns preguiçosos panfletários da política nacional, ressuscitasse passado décadas. A contradição no artista Cavaco está em parte por não saber transmitir isso depois de um bom refrão inicial e em não estar alinhado com aquilo que foi direta ou indiretamente o centro das prioridades de toda a sua análise nos últimos anos: a melhoria da vida das pessoas tendo por base os resultados económicos e das agências de rating, a soldabilidade das finanças públicas e a redução do défice.
Sem que tenha ido por este caminho de mixórdias coerentes, tudo o resto deste lado B parece manifestamente empobrecido e nem algumas melodias com críticas setoriais mais apuradas se safam. Faltou, sim, qualquer coisa que refletisse o falhanço retumbante das projeções económicas do próprio nos últimos meses, acompanhado de 99% dos economistas do ‘seu’ espaço público e que têm alguma dificuldade em aceitar agora os resultados de Portugal na imprensa internacional e alguma da unanimidade no caminho económico que o país projeta globalmente.
Naturalmente que depois de uma pandemia e no meio de uma guerra na Europa ninguém esperaria de Cavaco neste lado B uma espécie de retração honrosa à Liam Gallagher com um ‘For what it’s worth’, mas dizer que um futuro governo apanhará os cacos deste nesta vertente é, além de fantasioso ao quadrado na discrepância, um real sintoma de quem francamente estagnou no tempo e na própria criação artística. Se assim não fosse, Cavaco entenderia também que os números do turismo são o que são porque se manejou bem no meio dessas tempestades.
Só que esta estagnação no tempo do artista também não lhe permitiu ao longo de uma hora e num momento-chave, dirigir uma música que seja à banca. Um setor com o qual, nalguns casos, sempre teve uma relação demasiado próxima e noutros uma ligação totalmente tóxica. Tão bom que teria sido para o negócio dos vinis do PSD ter ali um artista de renome, reforçando que em tempos de lucros extraordinários houvesse alguma responsabilidade social e um pingo de give back.
Sobretudo e depois de tantos anos de dinheiro dos contribuintes injetado nas mais variadas entidades bancárias! Mas a massa de Cavaco é outra e nunca nos podemos esquecer que o lado B é onde está a autenticidade e a personalidade dos artistas.
Por tudo isto, resta-me terminar referindo que o lado A deste vinil do não político mais político do país até tem nota positiva. Comercialmente, chega aos mesmos de sempre de forma sonante, vendendo entre eles. Mas o lado B é uma autêntica deceção que acaba por revelar o que toda a outra maioria e os independentes mais desrespeitam neste artista.
Uma vez que os lados A e B dependem mutuamente um do outro, as vendas do vinil de Cavaco estagnarão antes do esperado.
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