Opinião

O cerco de cartão e o crepúsculo do regime

O cerco de cartão e o crepúsculo do regime

Rui Lage

Deputado do PS

Hoje, são os populistas de extrema-direita que fantasiam com cercos aos democratas. Com a devida vénia, atualizemos a resposta do “Almirante sem medo” para dizer: “Vão bardamerda mais o cerco”

No acervo de “vandalismo institucional” do Chega, para usar a expressão de Francisco Assis, tem lugar cimeiro a difamação alarve do chefe de Estado do Brasil, na Assembleia da República. Avulta também o indecoroso aproveitamento político do homicídio de duas assistentes sociais no Centro Ismaili de Lisboa. Há dias, tivemos direito a um “cerco” à sede do PS, no Largo do Rato.

A história militar é prenhe de cercos a praças-fortes, castelos e cidades, como o que sitiou a fortaleza de Massada, em 73 d. C, ou o cerco de Leningrado, posto pelos nazis, passando pelos dois cercos a Lisboa ou pelo do Porto, em 1832. Da Ucrânia chegam-nos hoje notícias de cidades cercadas e cruelmente destruídas pelos russos. Depois temos os cercos ficcionais, como o de Tróia, que ocupa a maior parte da Ilíada, ou o cerco à la Monty Python, em que uns quantos cavaleiros franceses, acossados no seu castelo pelo Rei Artur, cobrem os ingleses de impropérios e acabam a atirar-lhes com vacas por cima das muralhas. O “cerco” clownesco do Chega é desta estirpe, a lembrar os números circenses que trouxeram notoriedade a José Manuel Coelho, na Madeira – protagonista, aliás, de um “assalto” à sede do Governo regional num tanque de guerra de cartão. O episódio de sábado passado também envolveu cartão: o do boneco do Primeiro-Ministro, vestido à gangster pelos sitiantes e metido numa jaula de pantomina. No meio da chusma, qual Flora, deusa romana das flores, o líder do Chega prenunciava uma “nova primavera” para desalojar “os cravos vermelhos que nos deram Abril e toda a corrupção de Abril” – palavras do beato. O messianismo pimba vive deste palavreado sonante. Mas sempre tem a utilidade de deixar uma vez mais escarrapachados os desejos do Chega.

A democracia portuguesa precisava de um sistema de drenagem da enxúndia populista que, gota a gota, se infiltra no solo da cidadania e da vida coletiva e a polui de factos alternativos, ladainhas conspirativas, preconceitos, mentiras e ilusões. Esse sistema de drenagem já existiu. O seu emaranhado de tubagens e sifões era mantido por um rol de figuras da política e da sociedade civil que velavam conjuntamente por uma ética da discussão e por um módico de urbanidade – uma cultura democrática digna desse nome. Esse sistema incluía as diversas organizações partidárias e as suas lideranças. A ritualização do conflito, no Parlamento, prolongava-se no espaço mediático e permitia que as partes se afrontassem enquanto adversários e não como inimigos. O ataque político não se confundia nunca com o enxovalho e com a difamação. Era o “regime” no que tinha de mais recomendável.

O silêncio da nossa constelação partidária sobre este “cerco” à sede do PS é muito mais grave que o incidente em si mesmo e parece significar que o regime entrou na fase crepuscular. Por atos e omissões, assistimos ao eclipse das velhas virtudes políticas que, nos tempos de Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral, e outros, davam o timbre à vida da República. Mário Soares, recordo, não hesitou em pedir à Federação do Porto do PS para ajudar os centristas quando, em 1975, estes se viram cercados e ameaçados no seu congresso do Palácio de Cristal. Se o PREC já lá vai, ninguém sabe o que lá vem. No sábado passado, fora do núcleo dirigente do PS, só tivemos Francisco Assis, que nunca faltou com o seu brio democrático, liberdade de espírito e integridade republicana.

Não há populista que se preze que não acuse as elites de todos os males possíveis e imaginários. Mas se há culpabilidade de que as elites não se livram é a de conviverem displicentemente com o discurso antipolítico em vez de lhe moverem uma luta sem quartel. Há algo de mórbido na maneira como o regime oferece o flanco às chicotadas populistas, sem zelar ao menos pela sua dignidade. Passamos de um sistema de drenagem para uma lixeira a céu aberto.

Na história da nossa democracia, sobressai o cerco à Assembleia Constituinte, a 12 de novembro de 1975. Conjuntamente com outras forças democráticas, como o PPD e o CDS, o Partido Socialista resistiu à insurreição que ameaçava a democracia recém-nascida. Esse cerco foi o vestíbulo do 25 de novembro, data em que se evitou a sovietização do país, muito graças a Mário Soares e ao PS. Ficou célebre a resposta do Primeiro-Ministro de então, o Almirante Pinheiro de Azevedo, aos manifestantes que alargaram o cerco à sua residência oficial e o apodavam de fascista: “Vão bardarmerda mais o fascismo”. A ironia é o condimento da história. Hoje, são os populistas de extrema-direita que fantasiam com cercos aos democratas. Com a devida vénia, atualizemos a resposta do “Almirante sem medo” para dizer: “Vão bardamerda mais o cerco”.

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