Opinião

Ocupámos pela ciência, mas nem passando fome

Ocupámos pela ciência, mas nem passando fome

Teresa Núncio

Ativista e porta-voz das ocupações pelo Fim ao Fóssil

Em resposta a “Ocupar pelo ambiente? Melhor seria estudar.” O golpe saiu no mesmo dia que o início das ocupações estudantis por Fim ao Fóssil em Portugal. O drama cinematográfico da autoria da subdiretora do Diário de Notícias relata como protagonistas da transformação energética, Galp e EDP, sofrem heroicamente às mãos de estudantes, que tragicamente se entregam à radicalização e criminalidade (entenda-se, como crime, a ocupação dos respetivos estabelecimentos de ensino)

Francamente, começamos a ficar algo confusas com a obsessão das direções em falar em radicais antes de falar connosco. Ou com a solução milagrosa das implacáveis críticas: tantas vezes, resume-se a irmos estudar. Aqui, segue-se um questionamento quase rigoroso das nossas reivindicações: enfim, atire a primeira pedra quem nunca trocou energia com eletricidade.

“Alguém lhes perguntou como pretendem que se materialize essa ambição — e em sete anos?”. Sim, Joana, na verdade, tem sido recorrente pedir a crianças e estudantes instruções para resolver a maior calamidade que alguma vez recaiu sobre a espécie humana: a crise climática, um pormenor aliás nunca referido no texto “Deviam era estudar”.

Mas descansem, porque nenhuma dessas instruções implica, como a jornalista nos sugere, voltar a puxar carroças. Nós, a geração dos smartphones topo de gama, que – de tão confortável que está – se dedicou a instagrammer de manifestações, descobrimos, algures na net (ver empregos-clima.pt) que as tais “soluções válidas” já existem. No mesmo dia, descobrimos o seguinte: de “conversas aborrecidas” estará o inferno climático cheio.

É o seguinte. Se não estivermos a falar de cortar emissões, não é uma conversa sobre clima. Se não estivermos a falar em 2030, não estamos a falar da mesma crise (a que nós, e o secretário-geral das Nações Unidas, conhecemos promete tornar-se irreversível nesse ano). Não se trata de “desfechos milagrosos”, mas de carbono na atmosfera, e de parar quem o está a injetar, desmantelar a dependência energética da indústria fóssil. Pelo caminho (este), Joana (em vez de ficar só a olhar), somos até capazes de baixar a conta da eletricidade a esses que tentam por comida na mesa.

Falar de fósseis é falar de energia. Usamo-los em máquinas industriais, motores de veículos, aquecimento e eletricidade. Nas últimas ações, focámo-nos apenas no primeiro passo: descarbonizar a eletricidade, menos de 30% do nosso sector energético. Esse plano é, sem dúvida, até 2025.

A meta para 2030, sim, é descarbonizar todo o sector energético em Portugal. Não é trivial, implica urgentemente começar a cumprir a ciência, o mote da recente greve de fome igualmente ignorada pelas instituições e sociedade. De quantos destes relatórios precisamos, para parar de esperar por milagres políticos ou tecnológicos?

Joana, preocupa-nos o mesmo: sectores como a indústria e transportes, ainda com enormes desafios e dependência de combustíveis fósseis, sendo esta inação ainda mais grave. Ou a enorme pegada de destruição das renováveis quando alimentam consumo alienado e crescimento infinito, dê-se o protagonismo a Galp e EDP.

Eles programam o Universo digital, os gastos imensos da publicidade e a substituição anual de aparelhos eletrónicos - e vamos culpar o consumidor? Eles falam em monoculturas de painéis solares no Alentejo Litoral, enquanto há telhados vazios e sol que chegue para todos – e será esta crise de custo de vida minimamente aceitável?

Precisamos de investimento público, não nesta lógica, mas num sistema nacional de transição justa, combatendo a precariedade com a criação de emprego digno que torna este plano realidade. Precisamos de eficiência energética e de uma rede de transportes (assim) descarbonizada. Tudo inviável, claro, se o plano for o do Governo: um Roteiro Para a Neutralidade Carbónica que não menciona transporte públicos.

Ignorar este, o único plano de transição justa compatível com a ciência climática em Portugal, é ignorar o fundamento de toda a palestra, panfleto e reivindicação produzidos pelo movimento jovem que tanto criticas.

Radical é conformares-te com um ministro do Ambiente e Ação Climática que não sabe acelerar uma transição energética que nem está a fazer, enquanto faz parte de um panorama político de novos gasodutos, aeroportos e resgate dos lucros das petrolíferas. Cada ano que passa a viagem acelera, a distância ao travão de emergência agrava-se.

A pressão pública é essencial, a normalidade é um obstáculo, e ocupação é a nossa tática. Numa crise que mata e é ignorada, quando condenar a inação é exigir demasiado, paralisar faculdades é o menor dos pedidos de ajuda; bloquear o terminal de GNL do Porto de Sines, nada mais que autodefesa; muito para lá de “confortável existência”.

Aliás — e para terminar — não vemos assim tanto conforto em não conseguir sair casa dos pais, poupar dinheiro, arranjar casa ou emprego. Não encontro a juventude em não ver dois palmos de futuro à frente. Ocupo uma Universidade entre cantinas sociais a definhar, espaços aluno em vias de extinção, saúde mental desfeita numa performance de autoridade, meritocracia, assédio e competição a que alguns chamam sistema de ensino; e ecoa:

Naquela hora, sentado no chão, conheci o poder da não colaboração. Agora sei o que é política.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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