Opinião

Coartados

Coartados

Mariana Leitão

Chefe de Gabinete e membro do Conselho Nacional da IL

Desenganem-se: a nova restrição à venda e consumo de tabaco não diz respeito apenas aos fumadores, é uma questão de liberdade. E o que virá depois?

Homens, povos, nações e civilizações têm lutado século após século pela liberdade e continuam a fazê-lo hoje. Apesar dos avanços civilizacionais que foram transformando o mundo e que fizeram com que a liberdade, em especial a liberdade individual, deixasse de ser alcançável apenas para alguns - os reis, os mais abastados, os poderosos, os de determinada cor, os alfabetizados, os varões -, continuamos a ter de lutar pela liberdade sempre que sentimos que ela está a ser limitada.

E hoje é quase visceral a reação à limitação da liberdade. Nenhum de nós quer estar aprisionado, condicionado por fatores externos, por imposições absurdas, por preconceitos de outros tempos, por regras obtusas. No entanto, a liberdade vai sendo sonegada aos poucos, devagar, quase sem darmos por isso, com argumentos como a prevalência de um suposto bem maior ou bem comum. E, deliberada ou inconscientemente, vamos abdicando dela.

Foi assim com muitas das regras na altura da pandemia em que o Estado decidiu limitar a nossa liberdade sem apresentar argumentos ou evidências que justificassem tantas restrições e nós, impelidos pelo medo da doença ou das consequências da “infração”, fomos aceitando tudo o que nos ia sendo imposto.

Estas restrições às liberdades individuais são potenciadas pela histeria coletiva, pelo pânico, pela desconfiança uns dos outros, acicatada pelos próprios governantes, que, assim, conseguem garantir uma maior anuência por parte das populações. E nós, cordeirinhos, vamos fazendo o que nos mandam sem questionar.

As novas restrições ao tabaco são mais um exemplo de como o Governo quer controlar a nossa liberdade, quer determinar o que é que cada um de nós pode ou não fazer com o seu corpo e com a sua saúde, o que um estabelecimento comercial pode ou não vender, onde é que alguém pode ou não comprar tabaco e em que situações o espaço público (mesmo ao ar livre) é de todos ou só de alguns.

Mesmo em situações em que ninguém vê a sua liberdade cerceada, o Governo insistiu na sua fúria reguladora através da criação de normas disparatadas e contrárias à liberdade dos cidadãos. E é óbvio que ninguém se está a referir a situações em que terceiros são expostos ao fumo, pondo em causa a sua saúde, o seu conforto e, por maioria de razão, também a sua liberdade. Não é disso que se trata.

Como tal, muitas das medidas que foram tomadas no passado e que visavam proteger os não fumadores da exposição ao fumo foram necessárias e importantes e, acima de tudo, adotadas com proporcionalidade.

No entanto, desta vez, foi-se demasiado longe. Como é que vender tabaco numa bomba de gasolina ou num café prejudica a saúde de um não fumador? Em que momento da compra está alguém exposto ao fumo? Como pode a aquisição de um maço de tabaco limitar a liberdade de outrem ao ponto de ser proibido em quase todos os locais? Estando na rua, a quantos metros da porta ou da janela de um restaurante (ou de qualquer outra porta ou janela) se pode assumir que já não se está a incomodar terceiros? Ninguém vai conseguir entender-se, estamos perante mais uma enorme trapalhada.

O que leva então o PS a querer ostracizar os fumadores desta forma? E porque não os consumidores de bebidas alcoólicas, de fast food, de chocolates ou de qualquer outra coisa que se considere nociva à saúde?

O que está em causa é somente uma tentativa do Governo de ditar o que podemos ou não fazer. Já que não tem coragem de decretar a proibição de fumar (que é aquilo que verdadeiramente desejava fazer), cria violentos entraves à compra e ao acto de fumar em si mesmo. E como as medidas antitabaco têm recetividade junto de grande parte da população, António Costa e a sua equipa surfam mais uma onda de propaganda que sabem que em nada beneficia os não fumadores.

Nestas situações, até muitos dos que se intitulam paladinos da liberdade olham com satisfação para mais um pack de restrições, apenas porque desta vez não estão entre os perseguidos. Basta-lhes, como argumento, não gostarem de fumar, não gostarem do fumo ou do cheiro ou, simplesmente, não gostarem de ver pessoas fumar.

Desenganem-se: isto não é um tema que apenas diz respeito aos fumadores, é uma questão de liberdade. E o que virá depois? Vamos aceitar, um dia, que o Governo decida que só podemos comer carne vermelha uma vez por semana por causa do colesterol? Vamos tolerar que um qualquer burocrata decrete o fim da venda de sobremesas em restaurantes tendo o combate à diabetes como pretexto? Vamos calar-nos quando numa nova manifestação de autoritarismo nos impedir de comprar alimentos com quantidades mais elevadas de sal invocando o risco de hipertensão? Vamos dançar ao som deste proibicionismo dito sanitário quando nos tirarem a possibilidade de beber um copo em bares ou discotecas?

Talvez tenhamos de reduzir tudo isto ao ridículo para que se perceba que não estamos a falar de um confronto entre fumadores e não fumadores. Estas são lutas pela liberdade de todos nós, lutas pela liberdade de cada um, para as quais todos estamos convocados. Cedência após cedência, acabaremos completamente coartados. Nem mais saudáveis nem mais seguros. Só menos livres.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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