Notas introdutórias
Este texto é sobre a presença de culpa no processo de luto de familiares com quem convivemos. Também sofremos pelo falecimento de animais de companhia, que tanto são amados. No entanto, há muitas formas de luto, que não implicam necessariamente morte. Lidar com o fim de uma relação é um tempo de luto. Aceitar que a nossa vida mudou drasticamente sem ser nossa intenção. Tomarmos a escolha de mudar de vida radicalmente.
O que mais me marca num luto é quando temos a noção da irreversibilidade. A primeira vez que o senti foi no funeral da minha avó paterna. A consciência de que nunca mais ela me poderia dizer “Vai com Deus”, porque Deus agora a tinha. “A minha Mãe”. Dizia o meu pai. A minha avó. “A tua voz calada para sempre”. (José Luís Peixoto, pág. 24).
Podemos mesmo nem querer aceitar que aquela pessoa morreu, viver com a negação da morte. “‘Trazê-lo de volta’ tinha sido, durante meses, a minha missão escondida, um truque de magia.”, escreveu Joan Didion sobre o processo de aceitação da morte repentina do marido.
Ainda acho que ela não morreu mesmo, que apenas está num sítio bem longe onde não tem telemóvel e não pode estar sempre a ligar para perguntar se eu já almocei, se levei casaco e todas aquelas coisas que as mães perguntam e fazem.
T. Ela/dela, 34 anos.
No entanto, não existe somente esta impossibilidade de voltar atrás, mas também a quebra de uma promessa de um futuro possível, imaginado, querido. Esta sensação é especialmente forte com a morte de filhos/as — o pior que pode haver, deveria ser impossível de acontecer de tão cruel — e em perdas gestacionais de filhos/as que ansiávamos conhecer: temos expectativas, amamos um ser que sentimos a crescer dentro de nós, ou a par de nós, amamos um futuro. Infelizmente, ainda pouco se fala abertamente sobre perdas gestacionais, e ainda menos sobre mortes fetais já com o feto desenvolvido. Também este tipo de luto acarreta muitas vezes sentimentos de culpa, quando nunca ninguém iria querer magoar um feto amado: há coisas horríveis que simplesmente acontecem. “O mundo quer ser o mesmo mundo, e todas as tentativas não são mais que mentiras evidentes: jogos de espelhos e falsidade em que ninguém acredita”. (JLP, pág. 46 manuscrita no fim do livro)
Se estás a passar por um luto por perda gestacional ou morte fetal, ou tens alguém que te é próximo que está, deixo sugestões de bibliografia no final da crónica, com livros e páginas específicas neles, sobre o tema. E, por favor, se já te sentias mãe ou pai e estás a passar por isso, procura apoio psicológico. Um abraço apertado.
Esta crónica conta com testemunhos reais de seguidoras, aqui de forma anónima, várias referências bibliográficas e o apoio das psicólogas Vânia Magalhães, Patrícia Ruivo e Mariana Caldeira. Nasceu do pedido da minha terapeuta, para que lhe falasse da minha relação com a morte, dado o impacto que a morte da minha Tia-Avó Emília, minha melhor amiga de infância, minha segunda Avó, teve na minha vida. Quando comecei a escrever sobre isso, apercebi-me da presença da culpa no meu luto. Procurei representatividade. E aqui estamos.
“E depois, o amor, grande sobrevivente do desastre.”
Susana Moreira Marques, Pág. 45
A minha Tia-Avó Emília faleceu o ano passado, embora me pareça que foi há um mês. Era como uma segunda Avó para mim. Nunca teve filhos, embora a minha Mãe fosse como uma filha para ela. A minha Mãe dava-lhe uma prenda no Dia da Mãe. Quando ela estava bem-disposta, era sempre um bom dia para nós. Vivia sozinha com os seus dois tão amados cães. “Quando vieres visitar os teus pais, passa aqui”. Era viúva de um homem que não a deixava usar mangas acima do cotovelo. Mesmo já com 85, estava ciente de tudo. Era uma pessoa à qual chamariam de “difícil” e “ruim”, que ralhava com tudo e com todos. E por isso, achávamos que iria durar muitos anos, porque as pessoas ruins enganam a morte. Muito trabalhadora a vida toda. Mesmo sem poder, andava atrás da empregada a dizer como é que se limpava “a sério”. Porque ela sabia sempre melhor. A sua personalidade fez com que ela tivesse tomado atitudes muito rudes, em relação a familiares minhas chegadas, razão pela qual eu lhe guardava rancor. Nunca falei com ela sobre isso, porque achava que a hierarquia de respeito não mo permitia. Telefonava-lhe menos, ia visitá-la menos. A última chamada que ela me fez, eu não atendi, estava num festival. Tentei ligar-lhe duas vezes e ela não atendeu. Desisti. Passado uns dias, a minha irmã veio visitar a família com a minha sobrinha.
“Vamos a casa da Tia Emília?”
“Vamos! Ela está à espera que seja a Mãe a ir lá hoje, vamos nós e fazemos uma surpresa.”
Chegámos. Estava o INEM à porta de casa dela. Eu achei que ela só tinha caído. A minha irmã sabia que não.
“Nós estamos aqui, Tia.”
Tinha sido um AVC hemorrágico: ela não se magoou porque caiu, ela caiu porque teve um AVC. Não havia nada a fazer, só tirar-lhe a dor e esperar. Fiz as pazes com ela enquanto lhe dava mão, só eu e ela numa sala do Hospital, a minha Tia já inconsciente. Disse-lhe tudo. Por que não o fiz em vida? Disse-lhe que a amava. Cantei para ela. Prometi que no domingo a seguir íamos ao baile. Só lhe larguei a mão quando a minha mãe chegou. E depois, a culpa veio.
Eu não lhe atendi a chamada. Eu guardei-lhe rancor. Hoje sei que o rancor é humano, que tinha razão de ser e que o amor que nós tínhamos uma pela outra era, e é, superior a qualquer quezília do passado. Mas sei que nunca mais guardarei rancor a alguém que amo. Resolve-se. Fala-se. Que se lixe a hierarquia de respeito, é o amor que importa.
“Sinto tanta culpa.” Disse eu à minha terapeuta antes de termos falado imenso sobre tudo e ela me ter feito perceber a frase acima que começa com “hoje”. Então, hoje, decidi escrever sobre a culpa no luto.
O peso da culpa no peito de quem fica
Hoje, sou a mulher que falavas há tanto tempo em tantos versos. pena o tempo não voltar atrás. perdoa-me. custa-me tanto a crer que não me cheguei a despedir de ti. dói-me imenso, como um aperto no coração que me sufoca a respiração cada vez que olho para uma fotografia nossa. se fosse eu a decidir, voltaria atrás no tempo e, se tal acontecesse, obrigaria a criança que havia em mim a despedir-se de ti sem pensar que esse seria o meu último adeus.
R. Ela/dela, 26 anos.
Aos 10 perdeu o avô, em estado terminal de cancro no pâncreas. Ela não sabia. Não se despediu dele na última vez que o viu, no seu aniversário. Coisa normal de criança, que tem o futuro pela frente. Durante 5 anos nunca falou sobre a culpa que sentiu por não se ter despedido naquele dia, logo naquele dia. Até que falou com uma psicóloga que lhe sugeriu que escrevesse uma carta de despedida ao avô. “Fi-lo e, na altura, libertei-me. Saiu-me um enorme peso de cima dos ombros.” Este excerto é desse mesmo texto. Quando o peito lhe aperta, relê a carta.
A culpa, como me escreveu a psicóloga Patrícia Ruivo, é “uma manifestação bastante comum no luto. Aparece muitas vezes de mão dada com a ruminação pela incapacidade de resolução. A culpa como tarefa pendente de resolução, muitas vezes, não permite a integração e elaboração do luto, paralisa a pessoa enlutada.”
É importante também referir que cada luto é um caso específico. Cada relação entre luto e culpa é diferente. E a culpa nunca acontece só numa direção. “A culpa é multidimensional, na medida em que não existe uma culpa, mas diferentes culpas: a culpa de não ter impedido a morte, a culpa de não ter feito/sido o suficiente na relação e a culpa de aproveitar a vida depois da morte.” (Patrícia Ruivo)
Quando a culpa é uma tentativa impossível de controlo
Mesmo não tendo responsabilidade nenhuma sobre a morte da pessoa, a culpa pode aparecer. Como referiu a psicóloga Vânia Magalhães, “embora pareça contraditório, é na culpa que encontramos essa proteção emocional imediata”. É “menos angustiante sentir a culpa do que sentir a perda”, acrescenta a psicóloga Mariana Caldeira. Na tristeza está a vulnerabilidade. E todas/os sabemos como a vulnerabilidade assusta.
Achei este pensamento muito curioso, porque a verdade é que a culpa nos prende em pensamentos ruminativos sobre o que poderíamos ter feito de forma diferente para evitar a morte ou para “amar melhor” antes da morte. Como se evitar a morte estivesse sob o nosso controlo, como se ainda pudéssemos mudar a realidade se pelo menos tivéssemos feito isto ou aquilo. A culpa é a nossa fórmula impossível de tentar reverter a morte.
Sempre vivi com a minha avó, foi ela que me acolheu quando com apenas 5 meses de vida os meus pais decidiram abandonar-me. Sempre me deu as melhores condições conforme o dinheiro que tinha. (…) por volta dos [meus] 9 anos, ela adoeceu. Não tínhamos família próxima, havia desavenças.(…) Seria eu a tratar da casa e das compras e dela quando ficava de cama. Entrei na adolescência e pareceu-me que ela se sentiu com isso. Começou a ser manipuladora e narcisista...mas para mim, era normal.
(…)
Desde os 16 que [eu] não era a mesma na escola. Não criava amizades porque sabia que ter amizades significava ter que gastar dinheiro em almoços, gastar tempo com as pessoas e não conseguia dizer-me [a mim mesma] que isso era okay porque ela fazia maneira de me dizer que ela era mais importante.
Aos 19 anos, ela faleceu. (…) Todas as vezes que ia sair ou comprava algo sentia culpa. Parecia que ela iria aparecer e gritar comigo. (...) Demorei 2 anos a habituar me a viver uma vida e até lá, a culpa perseguia-me sempre: “não devo fazer isto porque ela não vai gostar"
Uma dia antes de ela falecer, eu estava em Lisboa, tinha ido ao IMT buscar a minha carta de condução. Encontrei uma amiga e decidimos almoçar juntas para depois eu apanhar o autocarro de volta para casa. Ela ligou me a dizer que tinha de ir para as urgências.
Senti culpa, mais do que tudo. Porque não estava presente naquele momento. Porque tinha decidido aproveitar um tempo para mim com a minha amiga. Mimar-me um pouco, como se estivesse a ter a única folga de tantos anos de luta.
C. Ela/dela, 24 anos.
A culpa é para ser ouvida e não silenciada
É muito mais profícuo indagar alguém quanto à sua culpa, do que tentar silenciá-la, como quem diz “já passou” a uma criança que acabou de se magoar e está a chorar de dor ou de choque. Como refere Patrícia Ruivo, é importante validar a culpa, ao invés de a esconder, transformando a culpa num indicador do caminho “no processo de nos libertarmos/ aliviarmos dela e no processo de reconstruirmos o nosso mundo e a nós mesma/os”. Ainda, a forma como a culpa aparece na sua multidimensionalidade é “altamente influenciada pelos códigos morais das culturas” e “reveladora dos nossos valores”.
Desta forma, a desconstrução da culpa é essencial para o processamento do acontecimento e o autoconhecimento de quem se sente culpado/a. Ainda, existe na culpa a possibilidade de a transformar, aos poucos, em responsabilidade de forma leve. Na mesma sessão de terapia em que falei à minha psicóloga sobre a culpa que sentia, para além de me mostrar de como ter sentimentos é humano, sentir rancor é humano — e muitas vezes justificado — ela perguntou-me: “Se o seu Pai morresse agora, sentia-se culpada por alguma coisa?” “E se fosse a sua Mãe?”
“[O enfermeiro de cuidados paliativos] combinou consigo mesmo que de cada vez que um doente morresse pararia para pensar. Nesses dias de trabalho em que morre um paciente guarda nem que seja apenas um quarto de hora e pergunta-se poderia ter feito melhor?”
(SSM, pág. 22)
*
Ligo mais aos meus avós. Vou visitá-los quando posso.
Fui ao baile e dancei com a minha Avó.
Valorizo mais a minha Mãe e o peso que é ser cuidadora.
Pesquiso sobre futebol para poder falar com o meu pai sobre o Benfica.
Digo aos meus familiares como gosto delas/es.
Digo às minhas amigas/aos meus amigos como gosto delas/es.
*
“Sei que tentamos manter vivos os mortos: tentamos mantê-los vivos de forma a mantê-los connosco.
Também sei que, se queremos viver, chega um momento em que devemos libertar os mortos, deixá-los ir, mantê-los mortos.
Deixar que sejam a fotografia em cima da mesa”
(Joan Didion, pág. 285.)
“Desejo-te dias leves.”, disse-me Patrícia Ruivo.
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