Opinião

O Estado nacionalizou os cidadãos: vivem como Ele quer, morrem quando Ele deixa

Se os demais "impuros" acham que estão a salvo da turba higiénico-sanitária, enganam-se. São os próximos. Agora, se não se importam, silêncio, que vou ali fumar um puro

O Estado nacionalizou os cidadãos. Entre o anti-tabagismo fanático e a eutanásia precipitada, deixámos de ser cidadãos livres e passámos a ser recursos do Estado. Um Estado feito divindade dessacralizada: ominipresente, omnisciente e omnipotente.

Conveniências circunstanciais à parte, a verdade é que o Governo, com o propósito de desviar atenções da CPI, da TAP, do SIS, e de todas as moscambilhas em que está enterrado até às orelhas, voltou esta semana à cartilha totalitária anti-tabágica, e o diploma da eutanásia lá seguiu para promulgação presidencial. E eu, que não queria nada fazer a vontade ao dr. Costa, e desviar-me um milímetro da crítica que dói mais a este desvario a que, só por comodismo ou acefalia, se chama de Governo, que é o quotidiano lamacento, vejo-me mesmo obrigado a isso. Porque o que se joga aqui é mais do que um fait-diver inócuo: é um atentado à liberdade, ao indivíduo e aos mais elementares princípios liberais de um Estado democrático.

O que outrora se poderia ter considerado vagamente um país de homens livres, tem optado, nos últimos anos, por se tornar num lugar onde tudo se faz no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado. Se o estimado leitor reconheceu a fonte, não se espante: foi intencional. Acrescento, desvendando um pouco mais a hipocrisia: boa parte dos que há poucas semanas celebraram Abril, não estavam a celebrar a Liberdade. A Liberdade, aliás, em Portugal, deve ser o valor político que mais invocações tem, inversamente proporcionais ao amor que verdadeiramente se lhe dedica: muito grito de ordem, pouca estima e pouca prática.

Não, não é exagero: o Estado define o que é aceitável para "proteger a vida" - o principal argumento anti-tabágico é o da saúde - e os termos em que é possível a morte - é o Estado que determina em que condições podemos exercer a "liberdade" de pôr fim à vida. Em ambos os casos, é o Estado o alfa e o ómega, o juiz e o executor: limita, proíbe e sanciona, no caso do tabaco; limita, autoriza e mata, no caso da eutanásia. Nem no primeiro caso protege a vida, nem no segundo caso assegura a liberdade.

E como toda a gente sabe, por cada tirano "benemérito" - os tiranos são sempre "beneméritos" - há sempre uma horda de idiotas diligentes e activistas. Aos que acham isto tudo muito bem, porque o cheiro e o fumo os incomodam, porque fumar mata o próprio e os outros e isso é intolerável, porque as criancinhas têm que ser protegidas de baforadas acidentais de fumo, porque deveríamos ter um país "limpo", asséptico e saudável, e que para assegurar essas suas "virtudes" só perseguindo, ostracizando, proibindo o fumo e erradicando os fumadores tal se consegue, deixo o meu profundo desprezo.

Entre estes palermas "virtuosos" contam-se, claro, demasiados "viciosos", e isso é normal; porque está na natureza humana a convivência do vício e da virtude, e porque está na natureza das democracias a convivência com aqueles de quem não gostamos e de quem discordamos. Entre eles, os do cheiro a sovaco, que ofendem o meu olfacto. E os das vozes estridentes, que ofendem os meus tímpanos. E os moralistas, que ofendem a minha consciência. E os bêbedos, que ofendem a minha paciência. E os dos perfumes rascas, que ofendem o bom gosto. E os das unhas de gel a baterem no ecrã táctil, que irritam os meus nervos. E os que cortam as unhas nos transportes públicos, que ofendem a decência. E os das colunas a tocar música na rua, que perturbam o meu sossego. E os dos telemóveis em alta voz nos transportes e em espaços fechados, que violam a minha quietude. Essa vossa liberdade de se comportarem como selvagens também fere a minha liberdade, mas não estou a ponderar cancelar-vos.

Para esta tribo tenho uma boa e uma má notícia. A boa notícia é que estão todos a salvo do fumo do meu charuto: sou bastante criterioso na escolha das minhas companhias, e como fumar é, para mim, um prazer, não gosto de o fazer mal acompanhado. A má notícia é que vão todos morrer: e as criancinhas que usam, qual cavaleiros da pureza e da bondade, na vossa argumentação, e que a maior parte de vós não terão sequer em casa, mais depressa se viciarão e morrerão com o bolinho, o refrigerante e o snack, que intencionalmente lhes passam para as mãos, do que com a baforada acidental de fumo que se sujeitem a inalar.

O número de mortes por factor de risco, em Portugal, directamente relacionadas com consumo de tabaco tem vindo consistentemente a descer desde 2000. Hoje, o tabaco é o terceiro factor de risco nas causas de morte em Portugal, depois da tensão alta e do alto teor de açúcar no sangue; estas duas causas em crescimento acentuado, o tabaco, repito, em decréscimo constante e consistente. Em quarto lugar está a obesidade, também a crescer. Em quinto lugar vem o álcool, a crescer desde 2015.

Se os gordos, os viciados em café, os ociosos e sedentários, os gulosos, os petisqueiros, os alcoólicos ou, próximos destes, os "nem tanto, só um bocadinho", enfim, todos "os impuros", acham que estão a salvo da turba higiénico-sanitária, enganam-se. São os próximos.

Este não é um tema qualquer. Não é sequer, nos termos em que está a ser discutido, um tema de saúde. Este é um tema totalmente político. Absolutamente vital. Estamos a falar de vida e de morte, e estamos a falar de Liberdade. Ao Estado, no quadro de um contrato social imemorial, numa versão simples, mas essencial, cabe a protecção da Vida, da Liberdade e - no último ponto a doutrina divide-se, mas eu sigo a dos founding fathers dos Estados Unidos - o direito do cidadão perseguir a sua felicidade. E isso pode passar, também, por fumar. Dizer protecção da vida é diferente de dizer imposição de um estilo de vida. A mera presunção de definir um estilo de vida saudável e a tentação de o impor ao outro são um ignóbil e ignorante ataque à dignidade humana e à Liberdade.

Dizia o Nelson, "Como são parecidos os radicais da esquerda e da direita. Dirá alguém que as intenções são dessemelhantes. Não. Mil vezes não. Um canalha é exatamente igual a outro canalha." Tinha razão. Agora, se não se importam, silêncio, que vou ali fumar um puro.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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