E quando se pensava que, apesar de tudo, e felizmente, neste enredo da Guerra dos Tronos não haveria sangue, mortes a sério, eis que se ultrapassa o inconcebível, o impensável. De repente, o vórtice da desgraça e da impunidade parece engolir tudo e todos. Há brigas, assaltos, rusgas e buscas mais ou menos rocambolescas ou nos limites da constitucionalidade.
Parece que tudo aconteceu no Oeste. Mas não. Está a acontecer aqui, neste canto ocidental da Europa. E o inverno que se aproxima não é apenas o da dívida, do défice, do desemprego, dos salários baixos ou da falta de habitação, mas sim o da arrogância, da sede de poder de quem não demite, de quem não se demite e de quem deixa que tudo isso aconteça em nome da uma hipotética e inevitável estabilidade. Afinal, não há maior estabilidade que a dos cemitérios, quais jardins de paixões extintas.
Vivemos na espuma dos dias, vivemos submersos no efémero, na liquidez paradoxal do impasse político. Temos um Presidente da República refém do primeiro-ministro, dos seus caprichos e humores, num claro presidencialismo de primeiro-ministro, quando, num sistema semipresidencial como o nosso, com a eleição direta do Presidente, deveria ser ao contrário. Estamos a assistir a uma crise política que poderá acabar, infelizmente, numa crise da política, numa crise da República que apenas beneficiará os extremistas de todo o calibre.
É verdade que, para muitos, o país real assiste indiferente, distraído, alheio, ao que se passa na corte. A sua agenda, hoje, como no passado, é conduzida pelas televisões, pelos talk shows, pelos comentadores e pelos feeds e imagens das diversas redes sociais. Mas o mal está presente, por mais subliminar que pareça a algumas elites intelectuais.
Será, porventura, um mal habitual, burocrático, como lhe chamaria Hannah Arendt, mas não deixa de ser um mal maior. É o mal que afeta as nossas gentes, que afeta o prestígio da pátria e da sua História. É um mal que pode pôr fim a uma era de esperança na democracia, na liberdade e na igualdade de oportunidades, depois da longa noite autoritária.
E não, não é o fascismo que regressa, como tanto gostam de cantar aqueles que nunca defenderam a liberdade dos outros, pois o fascismo como tal nunca existiu entre nós. Mas poderá ser, seguramente, uma nova noite negra, autoritária, de medo e ansiedade a tirar a luz, a ensombrar o dia-a-dia do nosso país.
E não, não é mais um desabafo trajado de fatalismo. É apenas a, infelizmente, tentar evidenciar que estamos perante mais do mesmo.
Quando se vive contra o mérito, quando apenas se estimula a inveja, quando se limita a fomentar o servilismo, o oportunismo e a subsidiodependência de toda a sociedade civil face ao Estado gordo e ineficiente, alguma coisa vai mal debaixo do nosso Sol.
Claro que há neste governo pessoas com qualidade. Claro que existem, como em todos os elencos governamentais, bons, maus e vilões. Porém, tal como na saga de George R. R. Martin, uma boa Aliança ou um bom Governo valem pelo seu conjunto, bem como pela visão, coragem e autenticidade do líder. E aqui tudo isso tem faltado. Navega-se à vista, ao sabor dos ventos, sem um destino partilhado, sem uma estratégia e uma ambição clara para Portugal.
Resta-nos desejar e esperar que haja sentido de responsabilidade e se retirem as consequências políticas e jurídicas que o atual momento justifica e exige. Até porque, e parafraseando Albert Camus, aquando da atribuição do Nobel, cada geração se supõe votada a salvar o mundo. Mas a tarefa da atual talvez seja maior. A ela cabe impedir que o mundo se desfaça.
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