Foi esta a mensagem que a Glovo, plataforma de entrega de comida, divulgou junto dos seus clientes na passada segunda-feira. Embora a indisponibilidade de serviço fosse explicada pela empresa com “uma alta procura”, a realidade era outra: os estafetas estiveram em greve.
Pararam. Centenas fizeram um protesto que passava por não aceitar encomendas em pontos-chave e concentraram-se junto a alguns dos restaurantes onde existem mais pedidos, como o McDonald’s. Fizeram-no em várias cidades: Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Sintra, Figueira da Foz, Setúbal, Guimarães, Guarda, Almada, Chaves. Como não têm contratos de trabalho nem qualquer vínculo laboral, legalmente não estavam em greve. Mas foi disso que se tratou. Nas condições mais precárias, sempre se reinventam os repertórios de luta. É um caso de estudo.
Uma das razões maiores deste protesto prende-se com as regras relativas aos tarifários. As plataformas inventaram, nas últimas semanas, uma série de esquemas que visam proporcionar “uma nova experiência” aos estafetas. O efeito concreto é reduzir o que estes ganham por via de um leilão de pagamentos das viagens que os põe a competir atribuindo o serviço a quem aceitar uma tarifa mais baixa que o colega do lado.
Além de contestarem este procedimento, os estafetas exigem direitos elementares. Por exemplo: um valor mínimo de 2,5 euros por viagem; que seja atualizado o valor pago por quilómetro que hoje os põe praticamente a pagar para trabalhar; o fim do “chat bot”, um suporte ao estafeta que não responde a pergunta nenhuma e que repete inúteis frases feitas; melhores condições de segurança; o fim dos “bloqueios de perfil”, verdadeiros despedimentos sem regras nem explicações ou qualquer possibilidade de defesa.
Um dos ganhos mais importantes da legislação laboral que entrou em vigor no início deste mês de maio diz respeito ao trabalho em plataformas. Foi uma área em que o Governo foi tendo várias posições. A pressão de juristas do trabalho, movimentos de precários, sindicatos, do Bloco, da Autoridade para as Condições de Trabalho, produziu resultados.
A “presunção de laboralidade” consagra um bom princípio legal: a inclusão dos estafetas nas regras gerais do direito de trabalho, reconhecendo-lhes direitos a um mínimo de remuneração, respeito pelos tempos de trabalho, proteção em caso de acidente, direito a descanso e férias, direito a negociarem com as plataformas um contrato coletivo com regras adequadas à sua atividade e a proibição de despedimentos (ou “desativações”) sem justa causa, por exemplo.
A questão é que a lei não foi ainda aplicada e as plataformas fizeram agora adaptações para conseguirem manter o regime de escravatura que inventaram e para continuarem à margem da lei laboral. Se a manobra vingar - isto é, se o Governo, a Autoridade para as Condições de Trabalho e os tribunais aceitarem o esquema -, a lei não terá qualquer efeito.
É também esse o objetivo do tal leilão de tarifas ou o “multiplicador na app” que dá ao estafeta a suposta “liberdade para definir o quanto queres ganhar” (como se diz no comunicado da Glovo), bem como as outras mudanças anunciadas aos estafetas pela multinacional, quando declara “adeus ao agendamento de horários”, “podes aceitar ou rejeitar os pedidos que quiseres”, “a pontuação será removida”…
A que propósito vêm estas alterações? Precisamente para contornar os indícios estabelecidos na lei, que implicariam o reconhecimento de uma relação laboral e respetivas responsabilidades. Por exemplo, quando se presume a existência de uma relação de trabalho sempre que “a plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma” (agora a Glovo dirá que é o reino da liberdade que impera). Ou quando essa presunção opera nos casos em que “a plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência” (agora acabou a regra de agendar previamente a disponibilidade). Ou ainda quando a plataforma “restringe a possibilidade de utilização de subcontratados ou substitutos” (que agora a Glovo anuncia ser possível, o que é uma ficção, dado que a inscrição do trabalhador na plataforma é pessoalizada), ou sempre que “a plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade”, incluindo através das avaliações (a Glovo dirá agora que a pontuação foi removida…).
Estamos no domínio da mais desenfreada exploração, que põe trabalhadores a concorrer sem regras numa espiral para o fundo, mas também perante uma descarada manobra para escapar à nova lei. Os estafetas já estão a fazer a sua parte contra esta habilidade, com as mobilizações desta semana, que se repetirão no dia 2 de junho. Agora faltam todos os outros, a começar pelo Governo.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes