Opinião

Faça-se comércio, não a guerra

Faça-se comércio, não a guerra

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

Apesar da alteração da relação com a China e da agressividade russa, a ideia de que o comércio contribuiu para a paz não foi desmentida. Mas está em causa. Globalmente e entre os aliados ocidentais

Integração económica, utilidade, pequenos passos, cooperação com África e federalismo. Foram estas as ideias fundamentais que estiveram na origem do que é hoje a União Europeia. Passados 73 anos, parte fundamental destas ideias – mesmo para quem não é federalista - está posta em causa por europeus e americanos.

Na cabeça de Robert Schuman, a Europa precisava de se integrar economicamente para evitar a guerra. Era esse o principal objetivo da sua Declaração, em 1950, cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Schuman começava pelo carvão e o aço pela óbvia razão da sua importância económica e para a indústria militar. Mas esse era apenas o início de uma maior integração económica. Esta Europa, que Schuman queria que fosse federal, contruir-se-ia com “realizações concretas que criassem uma solidariedade de facto”. Ou seja, não seria feita de uma vez e tornaria os europeus utilitariamente solidários uns com os outros. Além disso, tinha como uma das suas missões principais “contribuir para o desenvolvimento do continente africano”, um aspeto raras vezes referido e que é mais importante do que parece. Então e agora.

Em 2023, por causa da justificada desconfiança em relação à China e do, ainda mais imediato, medo da agressividade russa, a Europa e os Estados Unidos estão a pôr em causa uma destas ideias fundamentais: o contributo da integração económica para a paz.

As últimas três décadas foram de enorme integração económica global. O facto de isso não ter impedido a Rússia de atacar a Ucrânia, pondo em causa as suas importantíssimas relações comerciais com a Europa, fez crer que a fé na paz pelo comércio, um mantra do pós-Guerra Fria, era um equívoco. Do mesmo modo, a atitude da China, que já não é vista como um mero competidor económico, mas antes como um desafiante à ordem mundial existente, levou os dirigentes europeus e americanos na mesma direção: a interdependência económica, a globalização, não é garantia de paz e, pelo contrário, pode ser uma enorme limitação em caso de guerra. É uma espécie de verificação adaptada da profecia atribuída a Lenine, entre outros, de que o capitalismo haveria de fornecer a corda com que seria enforcado.

É verdade que a Rússia não se sentiu limitada pela dependência económica quando decidiu invadir a Ucrânia depois de ter atacado a Geórgia e ocupado a Crimeia, com algumas sanções económicas de moderadas consequências pelo meio. Assim como é verdade que se vê maior preocupação com o afastamento em relação à China nos conselhos de administração das maiores empresas ocidentais do que no governo chinês.

Uma e outra circunstância, porém, não provam a tese de que mais vale fechar e não comerciar. Provam, isso sim, que a relação económica não deve ser dependente. Assim como as empresas não devem estar nas mãos de um só fornecedor ou de um só cliente, os países também perdem margem de manobra se ficarem dependentes de um ou de outro país para o que seja fundamental ou para uma parte excessivamente significativa das suas exportações ou importações.

Isto significa que a relação da Europa, e dos Estados Unidos, com economias orientadas por lógicas não fundamentalmente económicas – e poucos se orientam apenas por essa lógica, naturalmente – precisa de ter essa cautela: não depender. O que é mais fácil de dizer do que de fazer. Como é que se faz as empresas europeias terem uma parte menor dos seus lucros dependentes das vendas na China? Eventualmente explicando-lhes que isso comporta um risco. E quanto a importações? O mesmo. Não faz sentido cortar relações comerciais, em especial quando há benefícios económicos evidentes para o ocidente e para os consumidores ocidentais. Mas é possível reconhecer, e incentivar, a diversificação.

A questão comercial com a China, porém, é apenas parte do problema. Onde o desalinhamento com a lógica da Declaração Schuman é maior é no interior do Ocidente. Aquilo que Robert Schuman explicou é que a integração económica cria benefícios mútuos e, consequentemente, solidariedade política. Ora, o que a Administração Biden e a União Europeia estão a fazer é reduzir a integração e aumentar a competição económica entre os principais aliados ocidentais. O que, mesmo que Schumann não o tivesse dito, é um enorme erro e um potencial desagregador imenso. E nem de um lado nem do outro parece haver liderança política que trave este processo a tempo.

Há ainda outra lição daquela declaração que convém recordar. A referência à obrigação moral dos europeus contribuírem para o desenvolvimento africano nasce numa lógica pós-colonial. Mas não só. O pressuposto é, também, da importância de África e da necessidade de a Europa não perder a ligação aquele continente. Por razões morais, certamente, mas por interesse e benefício mútuo também. Tudo isso se mantém actual, com uma alteração que a justifica ainda mais: a agressividade russa e a presença chinesa em África, ambas pelas mesmas razões: acesso a matérias primas.

A Europa não quererá certamente competir com a Rússia e a China na forma como estabelece a sua influência em África. Mas isso não significa que não reconheça a mesma importância. Ou maior, tendo em conta outras razões, incluindo demográficas, culturais e históricas.

Tudo isto para dizer que, mesmo não se sendo federalista, não custa reconhecer que a integração e interdependência económicas continuam a contribuir para a paz, que, por maioria de razão, a competição protecionista entre aliados é prejudicial e que África, então como agora, deve ser parte fundamental da estratégia europeia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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