Opinião

Uma nota (presidencial) em falso: sobre como o nervosismo faz desafinar

Uma nota (presidencial) em falso: sobre como o nervosismo faz desafinar

Miguel Prata Roque

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Não cabe a nenhum/a Presidente da República interferir na tomada de decisão legislativa, condicionando ou forçando o Conselho de Ministros a alterar uma decisão anteriormente tomada, pois não foi esse mandato que os eleitores lhe conferiram

Há algo de muito desafinado na nota presidencial de ontem, que comunicou o exercício do corriqueiro poder de promulação de um decreto-lei sobre colocação de professores.

A Constituição da República Portuguesa é claríssima quando consagra o princípio de separação de poderes, quando atribui o poder legislativo exclusivamente ao parlamento e, em certas condições, ao Conselho de Ministros e às assembleias legislativas dos Açores e da Madeira. Ao ponto de qualquer intervenção de um órgão constitucional que vise interferir nesse exercício de poder legislativo poder ser qualificada como usurpação de poderes. Usurpação, essa sim, bem reveladora de um “irregular funcionamento das instituições”.

Diga-se, em abono da verdade, que a atribuição de poder legislativo ao Governo (cfr. artigo 198.º), através do Conselho de Ministros (cfr. artigo 200.º), se afigura como uma excentricidade portuguesa. Na esmagadora maioria das democracias – com exceção de sistemas constitucionais que conferem reduzidos poderes legislativos de urgência aos órgãos executivos (como sucede em Itália ou em Angola), por vezes, seguidos de confirmação parlamentar –, os governos não legislam. Governam e executam as leis. Ainda influenciada pela tradição herdada do Estado Novo – em que o Conselho de Ministros (ou, melhor, o ditador) era o centro da decisão legislativa –, a Constituição de 1976 transigiu e ainda reservou ao Governo um poder legislativo pouco compreensível por qualquer cidadão de outro país mais habituado aos rigores democráticos e à separação de poderes.

Essa excessiva interferência do Governo no exercício de poderes legislativos tem, aliás, duas consequências muito negativas para o sistema político português:

  • Primeiro – diminui a importância política e o predomínio efetivo do parlamento na decisão legislativa, na medida em que os vários governos não só estão sempre mais apetrechados de recursos humanos e técnicos para (bem) legislar, como beneficiam da informação que recolhem junto dos seus congéneres estrangeiros e das organizações internacionais, assim monopolizando a legislação de cunho mais técnico e usando e abusando da apresentação de propostas de lei sobre matérias reservadas à Assembleia da República, que condicionam a atividade criativa das/os Deputadas/os;
  • Segundo – impede a transparência do procedimento legislativo, já que os sucessivos governos têm adotado regimentos internos que determinam a falta de publicidade e o segredo sobre documentos preparatórios, o teor das discussões e o conteúdo integral das deliberações legislativas tomadas em Conselho de Ministros.

Noto, aliás, que essa falta de transparência do procedimento de aprovação de decretos-lei é não só inaceitável, como contraproducente para a boa produção legislativa. Talvez isso explique a má qualidade de alguma da nossa legislação. Com efeito, não se compreende como é que pode aceitar-se que a Constituição imponha a publicidade e a transparência da tomada de decisões pelos tribunais (cfr. artigo 206.º) e pela administração pública (cfr. artigos 267.º, n.º 1, e 268.º, n.ºs 1 e 2) e que, ao mesmo tempo, possa ser interpretada como legitimadora de um secretismo do procedimento legislativo do Governo. Hoje, qualquer cidadã/ão pode aceder ao sítio eletrónico do parlamento e obter informação exaustiva sobre cada uma das fases da aprovação de uma lei. Pode assistir aos debates públicos no plenário e nas comissões, seja presencialmente, seja à distância, através de um canal de televisão facultado pelo próprio parlamento ou de qualquer plataforma eletrónica. Mas não pode saber o que se discute no Conselho de Ministros, quando este legisla. Nem sequer pode ter acesso aos projetos iniciais de decretos-leis, às suas várias versões ou aos contributos que cada membro do Governo aporta aos mesmos.

Evidentemente, isto desvaloriza a seriedade (e o rigor) do procedimento legislativo governamental. Permite que se enviem projetos de atos legislativos indevidamente preparados à Presidência do Conselho de Ministros, que cada membro do Governo proponha alterações sem uma fundamentação criteriosa das suas propostas e que não haja o cuidado indispensável em garantir elevados índices de boa legística e de respeito pelo procedimento democrático, no seio do próprio órgão executivo, quando este legisla.

Mais do que isso. Permite essa excessiva informalidade entre o Governo e a Casa Civil dos sucessivos Presidentes da República, no momento que medeia a aprovação em Conselho de Ministros e a sua publicação em Diário da República. É um fenómeno que não é novo. Ele tem vindo a ser reproduzido por cada novo inquilino do Palácio de Belém. Na verdade, começou com a tensa relação de coabitação entre o Presidente Mário Soares e o Primeiro-Ministro Cavaco Silva. No pico da tensão celebrizada pela acusação de que haveria “forças de bloqueio”, o segundo acusou publicamente o primeiro de usar o mecanismo do veto político para fragilizar o seu governo e, assim, impedi-lo de governar (“Deixem-nos trabalhar”). Em contrapartida, Mário Soares exigiu, então, a Cavaco Silva que lhe fosse enviada, semanalmente, a agenda das reuniões de cada Conselho de Ministros. Desse modo, teria mais tempo para acompanhar o teor dos decretos-leis a analisar – tendo em conta que a Constituição apenas dá aos Presidentes da República 40 dias para promulgação (cfr. artigo 136.º, n.º 4) –, o que facilitaria o procedimento de diálogo e de retirada de dúvidas e, a final, a promulgação presidencial de diplomas.

Ficou inaugurada essa cooperação interinstitucional. Que, aliás, é exigida pela própria Constituição (cfr. artigo 111.º, n.º 2). Desde então, conforme é público e estudado pelos constitucionalistas, tornou-se usual essa prática: envio de agenda do Conselho de Ministros exclusivamente restrita a atos legislativos; troca (mais ou menos informal) de opiniões entre a Casa Civil e a Presidência do Conselho de Ministros; solicitação de esclarecimentos quando haja dúvidas de constitucionalidade ou de adequação política; alteração de diplomas por iniciativa livre e voluntária do Governo. O que significa que, não raras vezes, o prazo de promulgação de decretos-leis do Conselho de Ministros – que é de apenas 40 dias – se prolongue, em muito, face à data da reunião que os aprovou. Tal resulta, obviamente, da inexistência de mecanismos de transparência e de registo público da data de envio efetivo, pela Presidência do Conselho de Ministros à Casa Civil do Presidente, da versão final do diploma aprovado. Bem ilustrativo desse fenómeno é, apenas a título de exemplo, o Código do Procedimento Administrativo que, apesar de aprovado em Conselho de Ministros a 9 de outubro de 2014, apenas foi promulgado por Cavaco Silva em 2 de janeiro de 2015 (!). Ou seja, 85 dias depois da sua aprovação.

Tenho vindo a defender, na minha qualidade de investigador e de docente universitário, uma reforma profunda do procedimento legislativo governamental, para que se garanta essa integral transparência, que é mais do que devida aos cidadãos. E, mais do que isso, que é fundamental assegurar a eficácia, a eficiência e o rigor do processo de feitura das leis. Mas, pela nota presidencial de ontem, percebe-se uma das razões pelas quais essa reforma não avança.

Os sucessivos titulares do cargo de Presidente da República não abdicam desse poder – insindicável, subreptício e, portanto, inaceitável em democracia – de exercerem a sua influência sobre o poder legislativo do Governo, condicionando-o. E, sem que haja escrutínio público, de influenciarem o teor de atos legislativos que, depois, vinculam todos os cidadãos e as empresas. Note-se que as/os candidatas/os a Presidente da República não apresentam um programa eleitoral de cunho legislativo. Quando neles votam, os eleitores não avaliam que medidas legislativas vão aqueles adotar. Pela simples razão que a Constituição não lhes confere tal poder.

O poder de veto (político ou jurídico, após pronúncia de inconstitucionalidade) resume-se a um mero instrumento de bloqueio. Foi assim que, inspirando-se no poder de veto presidencial norteamericano, Jorge Miranda e os demais deputados constituintes (incluindo o atual titular do cargo presidencial) o conceberam. O Presidente da República, no modelo constitucional português, não legisla. Limita-se a ter a faculdade de impedir a entrada em vigor de atos legislativos, quando deles discorda. E, ainda assim, sujeito a ser forçado pelo parlamento a promulgá-los, quando os tenha vetado anteriormente. Não cabe a nenhum/a Presidente da República interferir na tomada de decisão legislativa, condicionando ou forçando o Conselho de Ministros a alterar uma decisão anteriormente tomada, pois não foi esse mandato que os eleitores lhe conferiram.

É por isso que a nota presidencial de ontem desafina tanto. E agride, com zunido, o ouvido de quem está habituado ao concerto harmónico dos poderes constitucionais.

Pela primeira vez, um titular do cargo presidencial confessa que pressiona o Governo. Que faz sugestões. Que deixa subentendido que, caso as suas pretensões não sejam satisfeitas, veta o diploma legislativo. Mais do que isso: não satisfeita com a pressão exercida por entre a penumbra e as sombras dos palácios, a nota presidencial divulga, em público, que o decreto-lei que agora entrará em vigor não acolheu as sugestões do atual Presidente da República.

Sucede que continuamos sem saber que sugestões foram essas. Nem tão pouco qual a versão originária do diploma que seguiu para Belém. E, muito menos, a tal “versão minimalista” (sic) de compromisso que é sorrateiramente aludida pela nota presidencial. Tudo para concluir que se “(e)spera, contudo, que o diálogo com os professores prossiga” (sic). Ou seja, o Presidente da República contrariou os apelos dos professores para que vetasse o decreto-lei. E, sabendo que os deixará descontentes e desiludidos com essa inércia, logo se apressa a desviar para o Governo o ónus da insatisfação popular.

O escrutínio democrático não se cinge às paredes de São Bento. Já que o atual titular do cargo decidiu inovar, expondo as incongruências de um sistema constitucional que impede o Presidente da República de legislar, mas que tem permitido, nos bastidores, uma influência muito acima do aceitável pelo princípio da separação de poderes, era bom que se sujeitasse ao escrutínio público. Que divulgasse que propostas fez. Qual o seu conteúdo. E, já agora, os custos sociais, económicos e logísticos das mesmas.

Péssimo serviço à democracia é o que se faz, quando, a troco de popularidade ou numa tentativa de marcar a agenda política, se comete a perfídia de inovar (logo menos de uma semana após uma crise institucional), abrindo brechas no sistema de separação de poderes e induzindo os cidadãos em erro, sob o verdadeiro âmbito e alcance dos poderes presidenciais. Bem sabemos que o poder não se resume ao que está escrito nos textos constitucionais. Mas cabe a todas/os as/os titulares de cargos políticos contribuir para a literacia constitucional e para o esclarecimento, pleno e informado, dos cidadãos. Confundir o exercício de um poder moderador com o poder legislativo (ou executivo) é o primeiro passo para que os cidadãos não saibam a quem pedir contas. Daí a clamarem que “são todos iguais” é um pequeno e sónico passo.

O sistema constitucional português tem provado bem. Tem sido promotor de equilíbrio, de pluralismo ideológico e de estabilidade governativa. Afigura-se deveras insólito que, ontem, se tenha pretendido colocar em causa esse concerto harmonioso de poderes constitucionais.

E que um manifesto nervosismo presidencial tenha levado a sua Casa Civil a cantar uma nota em falso. Fica provado que, quem sobe nervoso ao palco, desafina. Ora, o país precisa de descontrair. Não de notas fora de tom.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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