Opinião

Se o Governo comprar um circo, o anão começa a crescer

Marcelo lembrou-se de uma velha raposa da política brasileira: Antônio Delfim Netto. Dizia o Netto: "Se o Governo comprar um circo, o anão começa a crescer." Agora, é só esperar para ver

Na semana passada, escrevi aqui um artigo com o título No circo do trapézio voador só ficaram os palhaços. Vejo-me forçado a fazer dois apontamentos sobre isso.

Primeiro apontamento: longe de mim insultar os nossos mais altos dignitários, gente tão habilitada, competente e focada no serviço público. Honi soit qui mal y pense. Felizmente, o João Vieira Pereira, esta semana, também aqui no Expresso, fez-me o favor de dar resposta a alguma dúvida persistente: os palhaços somos nós.

Costa, na Terça-feira, protagonizou um feroz ataque ao Presidente da República. A impressão que ficou - que os suspeitos do costume se apressaram a classificar de genial - foi o de que ou tínhamos eleições antecipadas (outra vez, convém lembrar) ou o Marcelo era um xoninhas. Durante o dia seguinte, enquanto Costa gozava - "é sempre um gosto receber uma chamada do Presidente", dizia ufano -, Marcelo foi comer um gelado.

Mas, por que é que os palhaços somos nós? Porque naquela conferência de imprensa de quase uma hora, António Costa passou quase metade do tempo a falar de um adjunto de um ministro, e outras considerações marginais, mas nem uma palavra sobre as mentiras do ministro nem sobre a-reunião-antes-da-reunião-antes-da-reunião. E nós, iludidos com o brilhantismo de Costa, a rir, como o palhaço rico.

Rico? Sim, rico. O país enterrou 5 mil milhões de euros na TAP, por capricho e conveniência do PS. Quase 2 milhões de euros por dia. Todos os dias. Desde há 8 anos. Tudo isto às mãos de gente irresponsável. E, sabemos agora, inimputável.

Ou pobre? É que enquanto os mesmos portugueses que pagam esta diatribe não têm médicos de família e os filhos estão sem aulas, e o país está cada vez mais perto de se tornar o mais pobre da UE, Costa joga poker em São Bento. E nós, nos demais dias, a chorar (e a pagar, levando chapadas), como o palhaço pobre.

O estimado leitor escolherá qual dos palhaços quer ser.

E eis-nos chegados à parte do espectáculo em que os spin-doctors do PS surgem em cena para no-la explicar: os ministros escolhem e demitem os adjuntos, o primeiro-ministro escolhe e demite os ministros e o povo português escolhe os seus representantes. E lembram: vejam lá, nesta cadeia, qual é o vosso lugar e a vossa responsabilidade e, por amor de Deus, parem com essa choradeira, 41,3% de vós votou no PS e 60,7% de vós votou Marcelo. Habituem-se.

Mais a sério. Perante este ataque institucional com raro paralelo no passado, Marcelo tinha duas opções constitucionais de acção, previstas na Constituição: dissolver a Assembleia da República ou demitir o Governo. Se Marcelo optasse por demitir o Governo, corria o risco de Costa lhe apresentar exactamente o mesmo, a seguir. E, neste cenário, tenho muita dificuldade em ver como é que Marcelo, sujeito a tal vexame e erosão de autoridade, se poderia manter em pleno uso do poder presidencial.

Por outro lado, se optasse pela dissolução da Assembleia, havia um risco não desprezível do PS voltar a ganhar as eleições. Numa campanha, aliás, que faria, também, contra Marcelo, vitimizando-se, dizendo que há um ano foi confirmado nas urnas pelos portugueses, com uma maioria absoluta. Paralelamente, agitaria o fantasma da extrema-direita e desprezaria Montenegro. Olhando as últimas sondagens, não percebo a satisfação em São Caetano à Lapa; um olhar mais atento mostra que as intenções de voto são ainda inferiores ao resultado eleitoral de Rui Rio, há pouco mais de um ano.

Em qualquer um destes cenário de acção, a autoridade presidencial corria elevado risco de erosão e, confirmando-se o risco, o titular do cargo teria poucas condições para a continuar a exercer.

A alternativa seria, portanto, a da 'vichyssoise', ou a do gelado, vá, se preferirem: servir a resposta a frio. Isto significava convidar o país para um banquete, e servir uma refeição fria. Ou uma vingança, para os mais cínicos. No estado em que está o Governo, esta é a pior resposta que Costa poderia ter e a menos má que Marcelo poderia dar. E foi precisamente esta que Marcelo escolheu.

Marcelo é um arguto leitor do país. Na verdade, entre a objectividade das condições políticas, acima descritas, e a subjectividade do seu perfil, avesso a perdas, Marcelo fez o melhor que era possível, da melhor maneira possível: deu uma aula explicando por que é que este Governo não tem ponta por onde se lhe pegue, deu um raspanete à garotada de fazer corar, e avisou que doravante seria uma espécie de Mr. Dobbins do Tom Sawyer; intolerante, exasperado e agressivo. Acresce a isto, repito, que esta é a pior solução para Costa e a menos má para Marcelo. E, acrescento, a mais aceitável pela generalidade dos portugueses fora da bolha, que não estão para andar com eleições todos os anos, e ainda menos se isso lhes trouxer mais instabilidade.

Curiosamente, na sequência da decisão de Marcelo - Marcelo decidiu, vale a pena sublinhar - surgiram, meio em surdina, algumas críticas do espaço político não-socialista. Primeiro a decisão: Marcelo disse ao PS, que estão tramados com ele. A pressão política e mediática a que os sujeitará, que em circunstâncias normais seria um enorme peso, nestas condições, com o pior e mais incompetente governo desde o PREC, é uma pedra atada ao tornozelo de Costa e lançada para o fundo do poço. Já ao PPD, disse: é como eu quero, no meu tempo e quem vos liderará nesse momento será quem eu quiser (ou, vá, aprovar). Este é o tempo da política, e não há política, doravante, sem ele, e dificilmente contra a vontade dele.

Agora as críticas a Marcelo, com origem no espaço não-socialista. Nota de desagravo: nesta matéria, tenho pergaminhos, been there, done that. Todavia, sobre o que se passou esta semana não vou na onda. Surpreende-me até a vontade que vi por aí expressa que Marcelo tivesse ido mais longe: é que Marcelo apresentou ao Governo a moção de censura (com caderno de encargos para memória futura, até), que o PPD não quis apresentar na Assembleia.

Outro argumento tocante que ouvi e li por aí: Marcelo deveria ter feito há anos o que fez esta semana. Ou seja, de acordo com esta leitura, o mesmo partido, a mesma área política, que está na oposição há 8 anos e que esteve eclipsado dessa tarefa quase 5, desejava que o Presidente a tivesse substituído? Marcelo tem muito por onde se criticar, mas lamento, não é para isso que se elege um Presidente.

Logo no início deste artigo dizia que me via forçado a dois apontamentos sobre o meu artigo da semana passada. Falta o segundo. Para esse efeito, mantenho o tom luso-brasileiro, iniciado com a decisão de convidar Lula da Silva para o 25 de Abril. Marcelo lembrou-se de uma velha raposa da política brasileira: Antônio Delfim Netto. Dizia o Netto, "Se o governo comprar um circo, o anão começa a crescer." Agora, é só esperar para ver.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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