Opinião

Deixem as nossas vulvas em paz

Deixem as nossas vulvas em paz

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

No meio de labioplastias estéticas, aclaramentos, injeções de ácido hialurónico, lipoaspiração vulvar, lipoenxertia, desodorizantes vulvares, gomas para alterar o sabor, “limpezas” a vapor indevidas, onde fica mesmo a saúde da nossa vulva? Onde fica a auto-aceitação corporal?

Esta crónica é sobre vulvas, mitos de higiene e sobre os imensos problemas inventados à volta da natureza da vulva.

“Depilar os pêlos púbicos é mais higiénico”

Começamos com o grande mito da higiene íntima: uma zona íntima depilada não é mais higiénica do que uma zona íntima não depilada. Ainda, com depilação, há uma maior probabilidade de infeção do folículo piloso, originando foliculite, que pode ser superficial ou profunda com furúnculos. Se, no entanto, a foliculite acontecer sem depilação, ou se pretendem mesmo fazê-la, a depilação definitiva com laser de iodo é uma boa opção – há zonas na genitália onde é preferível haver pêlo, ver aqui. Quanto à vagina, ela autolimpa-se, só é preciso lavar a vulva (parte externa) com água ou com um gel íntimo que respeite o pH vaginal.

Falando da autolavagem da vulva temos de referir o fator responsável por tal super poder: o corrimento, aquela “mancha viscosa, leitosa ou amarelada que aparece regularmente nas nossas cuecas depois da puberdade”, que “todas as raparigas saudáveis que chegam à puberdade vão encontrar corrimento nas cuecas diariamente” (Brochmann & Dahl, pp. 57-58). É por esta razão que Patrícia Lemos, Educadora Menstrual e para a Fertilidade, usa a expressão “o mito da cueca imaculada”. Acrescento que ter corrimento não faz com que seja recomendável o uso de pensos diários: para além de serem um desperdício nada sustentável, não deixam a vulva respirar devidamente. (No entanto, no caso de incontinência ou de spotting, não havendo contexto favorável para o uso de pensos reutilizáveis, podem ser uma solução).

Ainda, sabem como os bebés podem ficar com assaduras na zona genital? Pessoas com depilações completas podem ficar com assaduras também. Os pêlos não aparecem na adolescência só porque sim, aparecem com um intuito. Na zona púbica, existem por uma questão de atrito e para proteger os genitais de infeções.

A depilação é uma opção, óbvio, mas fique claro que fora do comum é haver mamíferos sem pêlo. Quando acontece em pessoas adultas, é devido a alguma condição, como a alopecia.

“Não são rosas, senhor, é mesmo a minha vulva”

Volta e meia, aparece mais um produto para fazer a vulva cheirar ou saber a rosas ou a outra coisa qualquer que não é natural, nem saudável para a vulva:

Desodorizantes vaginais, comprimidos, vaporizações vaginais tidas como milagrosas por gurus (cof cof Gwyneth Paltrow) que põe em risco a saúde vaginal – alterando o ecossistema de bactérias boas na vagina – , e as mais recentes vitaminas Lemme, para alterar o sabor vaginal, de Kourtney Kardashian.

Deixem as nossas vulvas em paz. Não é suposto cheirar a rosas, não é suposto saber a abacaxi: é uma vulva, é suposto cheirar a vulva e saber a vulva.

Importa dizer que “o cheiro e quantidade do corrimento variam consoante a fase do ciclo menstrual em que a mulher está”. Mesmo assim, se cheirar mesmo “mal”, pode ser sinal de alguma infeção. As médicas Dra. Nina Brochmann e Dra. Ellen Støkken Dahl, no seu maravilhoso livro “Viva a Vagina”, acrescentam: “Se já foi vista e os problemas de odor não são causados por uma infeção, talvez seja boa ideia usar calças largas ou saias, mudar a roupa interior durante o dia e ter os cuidados adequados (mas não excessivos!) com a sua higiene” (pág. 61). Há, ainda, diferenças no corrimento que podem indicar situações como vaginose bacteriana, candidíase. Todas as mulheres passam por estas situações, só precisamos de estar atentas às mudanças do nosso corpo e não ter vergonha de ir a uma consulta ou passar numa farmácia (dependendo do caso).

Agulhas na minha vulva?

Mais um dia, mais um tratamento estético possível para a vulva. Antes de mais, temos as tradicionais labioplastias puramente estéticas. Há cirurgias que podem ser úteis quando os lábios internos são tão grandes que se tornam desconfortáveis, provocando até dor, mas esses casos não são puramente estéticos.

Acredito que o facto de haver pessoas e textos sobre vulvas que denominam os lábios internos como “pequenos lábios”, reforça a ideia de que os lábios internos devem ser mais pequenos que os externos, quando é tão natural serem mais salientes como não. Por favor visitem a página The Vulva Gallery, para terem acesso a um catálogo imenso de vulvas reais.

Hoje em dia, há, ainda, o tratamento de aclaramento da zona íntima, que naturalmente tem um tom mais escuro que o resto da pele, e ainda ácido hialurónico para preencher lábios vulvares.

Obviamente que o primeiro não tem nenhum benefício de saúde física, nem o segundo. O preenchimento com ácido hialurónico é usado por quem acha que precisa e tem dinheiro para isso, em casos de perda de volume por perda de peso, por exemplo. A minha ginecologista, fazendo-lhe eu questões sobre tudo isto, disse-me que o procedimento mais indicado, para este efeito desejado a longo prazo, seria a inserção de gordura da própria pessoa – lipoenxertia –, pois só precisa de ser realizado uma vez. Se for para “experimentar como fica”, têm o ácido hialurónico. Nunca esquecer que nenhum procedimento é de risco zero. Nenhum.

Como o cardápio estético para a vulva é infindável, também é possível pedir uma lipoaspiração vulvar, para tirar volume do monte pubiano. Porque a Indústria Estética nos livre de aceitarmos o nosso corpo como ele é. Parece que estão constantemente a criar novos procedimentos e produtos para deixarem as mulheres a pensar: “Ui, dever-me-ia preocupar com isto, então?”. Deixem as nossas vulvas em paz.

Cada vulva é como cada qual

No contexto da minha primeira crónica no Expresso — sobre o Mito da Virgindade – falei com a Dra. Lisa Vicente, médica e Especialista Graduada em Ginecologia-Obstetrícia, autora do livro Atlas V, que me falou sobre a falta de representação de vulvas reais: praticamente não há (há no Atlas V, por exemplo). Estamos habituadas a ver vulvas desenhadas de forma perfeita, escancaradas, com os lábios internos mais pequenos que os externos, clarinhas, com pouco ou sem pêlo. Por isso, pergunto: será que quem procura procedimentos estéticos na sua vulva o faz por comparação a estas representações irrealistas? Por comparação a vulvas na pornografia mais comum? Porque toda a lingerie feminina agora parece só existir na versão renda transparente? Amigas, renda transparente com pêlo é bonito também!

Por outro lado, se fazer uma intervenção estética na vulva é mesmo importante para a detentora dela, por questões sérias, repito, sérias, de autoestima, aconselho a pensarem muito bem sobre o assunto e a procurarem clínicas e profissionais de saúde de confiança, com experiência. Não façam só porque a amiga fez, por favor, nem porque a pessoa com quem andam a sair prefere de tal forma. A vossa vulva é vossa, deve estar como vocês bem quiserem. Por isso, querem experimentar ácido hialurónico na vulva para ver como fica? Pronto, a vulva é vossa. Na minha não passa agulha.

Ora, no meio de labioplastias estéticas, aclaramentos, injeções de ácido hialurónico, lipoaspiração vulvar, lipoenxertia, desodorizantes vulvares, gomas para alterar o sabor, “limpezas” a vapor indevidas, onde fica mesmo a saúde da nossa vulva? Onde fica a nossa auto-aceitação corporal? Deixem as nossas vulvas em paz.

*

Bibliografia recomendada:

Viva a Vagina, de Dra. Nina Brochmann e Dra. Ellen Støkken Dahl, publicado pela Porto Editora.

Atlas V, de Dra. Lisa Vicente, publicado pela Arena.

Sobre procedimentos estéticos genitais para vulvas e pénis:

https://poligrafo.sapo.pt/sociedade/artigos/cirurgias-plasticas-aos-orgaos-genitais-os-procedimentos-beneficios-e-riscos-para-homens-e-mulheres






Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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