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Opinião

A aclamação dos reis portugueses

A aclamação dos reis em Portugal, em detrimento da coroação, além de realçar a função militar da realeza, acentuava a intervenção popular. O direito divino dos reis era, em Portugal, acompanhado por esta aprovação popular

No passado sábado, 6 de Maio de 2023, o mundo assistiu em directo à coroação do rei inglês, Carlos III. Nesse mesmo dia, há 115 anos, em Portugal foi aclamado o último rei de Portugal, D. Manuel II (1908-1910). Ambas as cerimónias marcaram a inauguração do reinado dos respectivos monarcas que, meses antes, tinham ascendido ao trono dos respectivos países. Porém, porque é que um foi coroado e outro aclamado?

Primeiramente, é necessário compreender que, mais do que espectáculos amplamente mediatizados, as cerimónias monárquicas estão revestidas de poder simbólico. Além de demonstrarem a aprovação do poder divino na escolha do sucessor, galvanizam também a adesão popular e o reconhecimento dos súbditos, fazendo-os sentir parte de um corpo político. Este poder simbólico é por isso tão importante como os poderes político, económico ou social, sendo parte integrante do soft power, indispensável às relações diplomáticas. No caso da coroação e da aclamação, são ambas rituais de passagem — como baptismos, casamentos ou cerimónias fúnebres — e que assinalam a subida ao trono do monarca. Porém, têm significados diversos e, como tal, rituais diferentes, resultantes das tradições seculares dos respectivos reinos.

Em Portugal os reis portugueses não terão sido coroados. A excepção poderá ter sido a dos reis da primeira dinastia, a partir de D. Sancho I (1185-1211). A hipótese, que não colheu o consenso historiográfico, foi levantada pelo historiador José Mattoso, assenta na referência em algumas fontes escritas e em representações iconográficas. Além de coroados, seriam também ungidos, acreditando-se por isso na sanção divina e na descida do Espírito Santo sobre o rei. Por essas razões, a cerimónia seria predominantemente religiosa e realizada por bispos. Durante a segunda dinastia sabe-se que não existiu nem coroação nem sacralização através da unção. As crónicas medievais relatam a existência de uma missa que antecedia a imposição das insígnias régias – sem existir a imposição da coroa. A corroborar a inexistência deste acto foi a bula papal outorgada ao infante D. Pedro, filho de D. João I (1385-1433), que concedia o privilégio da coroação e unção que, no entanto, não foram postas em prática.

A aclamação propriamente dita, que estaria presente ritualmente desde D. Afonso Henriques (1143-1185), perdurou até ao final da monarquia constitucional. Este ritual assentava na prática de cariz bélico efectuada na eleição dos chefes guerreiros das tribos germânicas e durante a qual se elevava o rei eleito, em pé, sobre o escudo militar, sendo aclamado pelos seus pares. A aclamação ritual portuguesa era a sobrevivência desta prática, pois embora o rei não fosse elevado no escudo, era entoado um pregão, pelo alferes-mor — um ofício-mor da casa real com funções inicialmente militares, e posteriormente cerimoniais — que incitava a assistência a responder e com isso, a aclamar o novo rei. Para além de se realçar a função militar da realeza, era acentuada a intervenção popular: o direito divino dos reis era, em Portugal, acompanhado por esta aprovação popular.

Ao longo de oito séculos, a cerimónia de aclamação sofreu algumas alterações, desde logo no lugar escolhido para a sua realização. Durante a segunda dinastia abandonaram-se os lugares sagrados, nomeadamente as Igrejas (à excepção de D. João III (1521-1557), aclamado em 1521 no mosteiro de S. Domingos). As cerimónias de inauguração da terceira dinastia — ou filipina, deram-se no reino vizinho, por vigorar a monarquia dual. O ritual seguido foi o do reino vizinho, embora Filipe I de Portugal (1581-1598) tenha sido reconhecido rei de Portugal nas cortes de Tomar. A dinastia de Bragança privilegiou o Terreiro do Paço, até D. Maria I (1777-1816). D. João VI (1816-1826) já foi aclamado no Rio de Janeiro. Durante a monarquia constitucional, o lugar escolhido foi o Palácio das Cortes, actual Palácio de S. Bento, sendo a cerimónia resguardada dos olhares populares e ocorrendo num local predominantemente político.

A cerimónia nestes sucessivos locais era antecedida de um cortejo que partia desde o palácio de residência do monarca. Os cortejos são um dos momentos altos dos rituais monárquicos, pois são pensados para impressionar os súbditos de forma a demonstrar a grandiosidade e magnificência da monarquia. Integravam-se, portanto, um conjunto significativo de pessoas que desempenhavam ofícios na casa Real, a pé, a cavalo ou em coches; os membros da família real, para além da força militar a cavalo e a guarda de honra. Cada qual apresentava os seus uniformes próprios e as insígnias do seu cargo, objectos que simbolizavam as funções por si desempenhadas. Por exemplo, sabe-se que D. João II (1481-1495) e D. João III usavam uma túnica designada por opa, mas que pelo menos desde D. João VI que o monarca já se apresenta com um manto forrado a arminhos. Durante a monarquia constitucional (1820-1910), dois outros coches integravam este cortejo — um vazio, o chamado coche de respeito e um outro, transportando a coroa — mandada fazer por D. João VI para a sua aclamação e que jazia em almofada própria junto do trono durante a cerimónia.

Dentro do Palácio de S. Bento formava-se um outro cortejo, invisível aos olhos da população de Lisboa. Apenas era visto pelos ministros do reino, pares e deputados, membros da casa real, aristocrata e membros de algumas corporações. Junto ao trono, tomavam parte alguns dos principais oficiais-mores da casa Real. O ceptro, presente pelo menos desde a aclamação de D. João II, era entregue por um oficial da Câmara do Rei, o camareiro-mor e mais tarde, quando este ofício deixou de existir, por um gentil-homem de serviço. Seguia-se um dos momentos mais importantes da cerimónia: o juramento sobre a Bíblia, que remontava igualmente ao reinado de D. João II e durante o qual o monarca jurava fazer cumprir a lei e respeitar a religião. Até D. João VI, a Bíblia era apresentada por um clérigo, depois por um secretário de Estado e, a partir da aclamação de D. Pedro V (1853-1861) em 1855, pelo presidente da Câmara dos Pares. Estas alterações demonstram a primazia que se concede a cada um destes poderes, percebendo-se que o religioso é relegado para segundo plano. Inicialmente, os membros das Cortes prestavam obediência ao rei, mas durante a monarquia constitucional Pares e deputados já o faziam aquando da sua nomeação para o exercício de funções e, portanto, não o repetiam nesta cerimónia.

A aclamação propriamente dita ocorria em seguida, à excepção de D. Maria II (1834-1853), que apenas efectuou o juramento no Palácio das Cortes quando atingiu a maioridade. O alferes-mor desfraldava a bandeira, era proferido um breve discurso, na monarquia constitucional pelo presidente da Câmara dos Pares, que terminava com “Ao muito alto e muito poderoso e fidelíssimo Rei de Portugal, o Senhor D. ...”, acompanhado por toda a assembleia. Imediatamente a seguir, o alferes-mor, em conjunto com os Reis de Armas, dirigiam-se à janela do palácio. O principal Rei de Armas gritava por três vezes: “Atenção” e o alferes-mor gritava “Real, Real, Real, pelo muito alto e muito poderoso Fidelíssimo Rei de Portugal, o Senhor D. …”. Seguia-se um conjunto de salvas de artilharia, que anunciava à cidade a aclamação.

Finda a cerimónia de aclamação, seguia-se, desde o reinado de D. João II, uma cerimónia religiosa de acção de graças, e a entrega das chaves da cidade pelas autoridades da Câmara Municipal de Lisboa, ritual integrado nestas festividades desde D. João IV.

Ao longo do tempo, esta cerimónia foi sofrendo alterações e adaptações aos novos tempos, de acordo como era entendido o poder do próprio rei, o sistema político que vigorava, se absoluto, se constitucional. Reflectia também as alterações vividas pela constituição da própria casa real, o género do monarca e os elementos que constituíam a Casa Real. E claro, o estado das finanças da Coroa. Já no final da monarquia, estas cerimónias foram tratadas pela imprensa republicana com desprezo, não tanto pelos gastos que implicavam, mas sobretudo pelo seu anacronismo e pelo enaltecimento dos privilégios de nascimento – do rei e dos aristocratas que dela participavam, em detrimento da meritocracia. Não terá sido o fausto ou a sua ausência que terá feito cair a monarquia portuguesa em 1910, mas terá sido certamente um bom indicador da fragilidade do regime.

Historiador e investigador do IHC – NOVA FCSH / IN2PAST

Pedro Urbano escreve de acordo com a antiga ortografia

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