Opinião

Para que serve o Dia Nacional do Azulejo?

Para que serve o Dia Nacional do Azulejo?

Leonor Sá

Conservadora do Museu de Polícia Judiciária

O título desta crónica é a pergunta que muitos cidadãos farão, sentindo-se perdidos numa montanha de “Dias Nacionais”, cuja quantidade crescente os atordoa. A resposta não vai caber na meia dúzia de linhas que se segue, mas poderá servir de ‘aperitivo’ a quem mais queira saber

É que na viragem do séc. XX para o séc. XXI, Portugal - detentor de um património azulejar riquíssimo, único no mundo e como tal identitário da cultura portuguesa – assistia, impávido, à sua destruição avassaladora, não só por furto, mas sobretudo por demolições e remoções constantes - e legais. Por incrível que hoje pareça, à época essa delapidação constituía um ‘não tema’ nos media, na academia, ou na opinião pública.

Apesar de deter um museu nacional próprio e de ser estudada por uma elite especializada, a azulejaria portuguesa era ignorada por grande parte da população portuguesa que, vivendo rodeada de azulejos, não lhe conferia especial valor nem o caráter culturalmente diferenciador que os forasteiros, a referida elite ou os ‘amigos do alheio’ lhe atribuíam.

E este desequilíbrio de apreciação favoreceu dramaticamente a sua falta de proteção e consequente delapidação. Assim, embora a destruição azulejar em Portugal nos últimos 50 anos esteja por quantificar, não há qualquer dúvida de que consistiu numa perda maciça, irreparável e praticamente silenciosa (até 2007), denunciada apenas por João Miguel dos Santos Simões (criador do Museu Nacional do Azulejo) que, já em 1961, se referia no Diário de Notícias às “constantes delapidações” e ao “verdadeiro alarme” que a situação causava.

Esta situação dramática justificou a criação, em 2007, do ‘Projeto SOS Azulejo’, por parte do Museu de Polícia Judiciária (sediado no Instituto de Polícia Judiciária e Ciências Criminais), na esteira de outros projetos interdisciplinares de prevenção criminal e salvaguarda do património cultural deste museu, e com a parceria gradual (até 2021) de 8 instituições: Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP), Direção Geral do Património Cultural (DGPC), Universidades de Lisboa (FLUL e FBAUL) e de Aveiro, Instituto Politécnico de Tomar, PSP e GNR. Este projeto, que não dispõe de orçamento próprio - a sua atuação baseia-se no aproveitamento/otimização dos recursos (sobretudo humanos) das instituições parceiras, utilizando as suas funções e saberes diferenciados – acabou por, apesar de infindáveis obstáculos, ganhar algumas importantes batalhas da salvaguarda do património azulejar português cujos resultados aqui resumidamente enumeramos:

- Os furtos registados de azulejos diminuíram quase 90%;

- Hospitais Civis de Lisboa e estações ferroviárias em todo o país inventariaram, defenderam e preveniram o furto do seu valiosíssimo património azulejar;

- O Município de Lisboa interditou a demolição de fachadas azulejadas e a remoção de azulejos das mesmas a partir de 2013 (RMUEL), estancando a ‘sangria’ azulejar que grassava na capital;

- O Parlamento legislou no mesmo sentido para todo o território nacional (Lei 79/2017), detendo a destruição legal de azulejaria portuguesa que devastava o país e criou, também em 2017, o ‘Dia Nacional do Azulejo’ (6 de maio) e recomendações de proteção azulejar ao governo;

- Milhares de crianças participaram anualmente na ‘AÇÃO ESCOLA SOS AZULEJO’;

- Vários artistas (Mª Keil, Eduardo Nery, Querubim Lapa, Cargaleiro, Pomar, Graça Morais), o Arq. Álvaro Siza e dezenas de ‘Boas práticas azulejares’ foram anualmente premiados, dando visibilidade e encorajando cada vez mais trabalhos de excelência na academia, na divulgação, na conservação e restauro, na arquitetura contemporânea, etc.

Todo este trabalho não passou despercebido fora de Portugal: apesar da ausência de ‘marketing’, o projeto foi alvo de intensa atenção dos media estrangeiros (agências noticiosas, TV, imprensa), mimetização no Brasil, e diversas honrarias. Finalmente, foi através do ‘SOS Azulejo’ que Portugal ganhou, em 2013 – pela primeira e única vez, em qualquer das categorias existentes – o maior prémio europeu para o Património Cultural (Grande Prémio da UE para o Património Cultural – EUROPA NOSTRA, cat. 4).

Dir-me-ão que em Portugal o ‘SOS Azulejo’ é pouco conhecido da população em geral.

Mas o DIA NACIONAL DO AZULEJO que o projeto criou poderá, com a ajuda do caro leitor, dar cada vez mais visibilidade a esta causa, e isso é que é importa. Pois a salvaguarda deste património não pode parar: não só porque o risco de delapidação azulejar não se volatilizou completa e miraculosamente, mas também porque importa continuar a estimular o encantamento da fruição estética do azulejo - e a sua permanência inovadora na arte e na arquitetura contemporâneas e futuras em Portugal.

Leonor Sá é conservadora do Museu de Polícia Judiciária e mentora e coordenadora do ‘Projeto SOS Azulejo’

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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