A propósito de Galamba, ou mudando de assunto
É inescapável: o debate político foi tomado por isto e, embalado pela agitação, decidi escrever também sobre Galamba e o seu ministério. Mas interessa-me outra história
É inescapável: o debate político foi tomado por isto e, embalado pela agitação, decidi escrever também sobre Galamba e o seu ministério. Mas interessa-me outra história
Mais casos, episódios internos de desagregação política do Governo, algumas cenas rocambolescas e uma novela entre primeiro-ministro e Presidente, a que não faltaram, para regalo dos comentadores, plot-twists e jogos de xadrez em que cada um procura fazer xeque-mate. É inescapável: o debate político foi tomado por isto e, embalado pela agitação, decidi escrever também sobre Galamba e o seu ministério.
Mas interessa-me outra história. Foi há três meses, em 28 de fevereiro, que 130 trabalhadores da CP, tutelada diretamente por Galamba, deixaram de receber. A Apeadeiro 2020, empresa de outsourcing responsável pelos bares do Alfa Pendular e do Intercidades, acumulou dívidas e não pagou os salários. A CP e o Ministério não se chegaram à frente, recusaram-se a assumir o serviço mesmo que temporariamente, atirando sempre a responsabilidade para a empresa subcontratada.
Durante 54 dias, estes trabalhadores estiveram acampados frente às estações de Campanhã e Santa Apolónia, sobrevivendo com as refeições doadas pelo sindicato e com o apoio de vizinhos e colegas que entregavam comida no acampamento. Ficaram rendas por pagar, viveram 90 dias de desespero. Só amanhã, 4 de maio, retomarão finalmente o emprego, com uma nova empresa concessionária e a promessa de receberem o que lhes devem. A CP e o Governo, que trataram de rescindir o contrato de outsourcing e de lançar novo concurso, deixaram-nos nesta aflição e neste limbo durante três meses, sem qualquer rede. “Esperávamos um processo mais humanizado”, declararam ao Público.
No passado dia 1 de maio, entraram em vigor as alterações à legislação laboral. Da designada “agenda do trabalho digno” faz parte uma nova regra de enquadramento do outsourcing: trabalhadores externalizados passam a estar abrangidos por acordos de empresa, bem como por acordos e contratos coletivos de trabalho das empresas onde prestam serviço.
Será que isto vai mesmo acontecer, nomeadamente nas empresas públicas e no sector social, por exemplo? E quando passaremos a ter uma política de insourcing, acabando com a subcontratação de funções essenciais como as dos vigilantes (em todos os serviços públicos), cantinas escolares ou assistência de sala nas instituições culturais? Não deveriam estes trabalhadores ter um vínculo com o Estado? É impossível combater a precariedade sem combater o outsourcing, que é atualmente um dos seus principais instrumentos.
Outras normas da lei agora em vigor são desafios igualmente importantes. A “presunção de laboralidade” com as plataformas digitais, um avanço legal significativo, por prever um vínculo laboral entre plataformas e trabalhadores, que as plataformas já anunciaram como pretendem contornar. Ou as novas regras sobre pagamento de despesas em teletrabalho. Ou sobre pagamentos no fim dos contratos. Ou o direito de sindicatos intervirem em empresas onde não têm filiados. Irá o Governo fazer cumprir a lei? Os sindicatos estão mobilizados para isso? Ou ela será olimpicamente ignorada nas práticas sociais e empresariais?
São questões que não têm empolgado o campo mediático nem merecido grande atenção - certamente menos que o escarcéu do computador e a demissão encenada de Galamba. E no entanto, falamos da vida de alguns milhões de pessoas diretamente afetadas.
Vale a pena lembrar, já agora, que a maior e mais escandalosa mentira deste governo aconteceu em setembro do ano passado, quando a ministra do Trabalho advertiu que a Segurança Social iria à falência caso se cumprisse a lei de atualização das pensões, que faria “perder 13 anos de vida ao sistema”. Eram números falsos, desmentidos em outubro pelo Orçamento, e continham uma sugestão gravíssima: o colapso da segurança social pública. Mas creio que nenhum comentador falou da demissão da ministra nem o Presidente interveio em nome da credibilidade e do prestígio das instituições.
O que explica esta invisibilização mediática e simbólica do mundo do trabalho e a sua correspondente desvalorização política? Por que gera tão pouco escândalo, comparativamente, o abandono pelo Ministério das Infraestruturas dos trabalhadores dos bares dos comboios? E por que razão a credibilidade relativamente ao que se diz sobre pensões, ou os efeitos de uma nova lei laboral - que talvez mude mesmo alguns aspetos da vida, ou que talvez venha a ser apenas um verbo de encher - vale tão menos que uma arruaça num ministério?
A política que temos é feita de paixões, mas estas não dizem respeito à “política dos muitos” nem à vida de quem trabalha. Como se vê com o caso Galamba, ficam no debate apaixonado sobre o que, provavelmente, diz muito pouco à maioria.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes