Opinião

O regular funcionamento das instituições

O regular funcionamento das instituições

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

António Costa comporta-se como aquele soldado que marcha em sentido contrário ao de todos os demais, mas acha que ele é que está certo

Como aqui escrevi na passada semana, a história do parecer sobre a exoneração do Presidente do Conselho de Administração e da Presidente executiva da TAP assemelhava-se aos contos infantis de fantasia.

Julgava eu que os atributos literários do Governo se limitavam a esse género. Mas não. Afinal, espraiam-se, também, ao domínio dos romances policiais! E o enredo é denso: um ministro e um adjunto que se desentendem e se contradizem publicamente; suspeitas da intenção de sonegar informações à comissão de inquérito; acusações de roubo de um computador e de agressões no interior de um Ministério; queixa à Polícia Judiciária e, até, denúncia ao Serviço de Informações e Segurança, que, aparentemente, terá tido uma intervenção directa na recuperação do objecto em causa, o qual (supostamente) conteria segredos de Estado – como se alguém fosse acreditar que um simples adjunto possa ter acesso a esse tipo de documentos.

A seu tempo, espera-se, os contornos exactos dos factos serão devidamente apurados – quer pelas autoridades judiciárias, quer pela comissão parlamentar de inquérito à TAP. Mas há avaliações que, desde já, podem e devem fazer-se.

Em primeiro lugar, é óbvio que aquilo que se passou no âmbito do Ministério das Infraestruturas não podia ter acontecido. E, por isso, todos os intervenientes deviam ser afastados – incluindo o Ministro, seja pelos erros que cometeu directamente, seja pelos que sejam imputáveis a quem livremente escolheu e contava com a sua total confiança, pessoal e política. Só António Costa, que se comporta como aquele soldado que marcha em sentido contrário ao de todos os demais, mas acha que ele é que está certo, não compreende isso.

Em segundo lugar, é claro que inexiste qualquer fundamento para a intervenção do SIS, tendo em conta aquilo que são as suas atribuições e competências legais.

Os serviços de inteligência não são órgãos de política criminal, não lhes cabendo, portanto, interrogar e deter pessoas ou apreender objectos roubados.

Face á sua própria natureza, isso é uma evidência de elementar bom senso. Mas, se dúvidas houvesse, uma simples leitura do artigo 33.º da Lei n.º 9/2007, de 19 de Fevereiro, dissipá-las-ia. E, também, do n.º 2 do artigo 6.º, que veda, a tais serviços, o exercício de poderes, a prática de actos ou o desenvolvimento de actividades do âmbito ou da competência específica dos tribunais, do Ministério Público ou das entidades com funções policiais.

Insisto: o SIS não poderia ter qualquer intervenção neste rocambolesco episódio. E nem a justificação de estarem em causa os tais (supostos) segredos de Estado modifica o que quer que seja nessa conclusão.

Por outro lado, o Primeiro-Ministro tinha mesmo que ser informado (e, porventura até, de intervir). De facto, desde 2004 que os serviços de informações dependem directamente do Primeiro-Ministro (n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 30/84, de 5 de Setembro). E a alínea e) do artigo 17.º daquela lei não poderia ser mais cristalina, quando estabelece competir ao Primeiro-Ministro controlar, tutelar e orientar a acção dos serviços de informações.

Os episódios que se multiplicam em torno da TAP são reveladores de um “modus operandi” que é manifestamente contrário às exigências democráticas mínimas: autorizações para pagamentos de indemnizações que são concedidas, depois negadas e, finalmente, reconhecidas; pareceres que são recusados por tal ser contrário ao interesse nacional e que, posteriormente, se vem dizer que não existem; uma reunião que é organizada para combinar a melhor forma de condicionar o conhecimento dos factos pelo Parlamento – para não dizer enganá-lo - e que, uns dias, foi realizada a pedido da Presidente executiva da TAP e, outros, resultou da iniciativa do próprio Governo; accionamento indevido da intervenção de um serviço de inteligência.

Por fim, ontem à noite a cereja em cima do bolo: um desafio directo ao Presidente da República, com a insistência na manutenção no Governo de um Ministro que aquele queria – e com razão – ver demitido.

E, aqui, voltamos à questão da responsabilidade política - é que em causa não podem estar, apenas, os directos responsáveis por falhas tão graves, mas também quem os protege e tenta diminuir a relevância negativa dos seus comportamentos.

Em 1978, um Primeiro-Ministro – Mário Soares – foi exonerado pelo Presidente da República, contra a sua vontade, na sequência da ruptura da coligação que suportava o Executivo. Em 1982, por ocasião da primeira revisão constitucional, os poderes presidenciais nesta matéria foram amplamente reduzidos, passando a demissão do Governo a estar especificamente ligada à necessidade de, por esse meio, assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas (actual n.º 2 do artigo 195.º da lei fundamental, que permanece intocado desde então).

A expressão “regular funcionamento das instituições” corresponde àquilo que, em direito, se designa por conceito jurídico indeterminado, isto é, algo cujo conteúdo e extensão são largamente incertos, cabendo ao intérprete, no exercício de um poder amplamente discricionário, determinar os termos e condições do seu exercício. E o intérprete é, aqui, um e só um – o Presidente da República.

Deixo, ainda assim, uma pergunta: a degradação da qualidade da nossa vida democrática, por razões exclusivamente imputáveis ao Governo, não é já é suficiente para o Presidente da República agir? Ou ainda teremos de assistir a um desrespeito adicional das instituições, sabe-se lá com que consequências, para que isso venha a suceder?

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas