É urgente realizar uma transição energética, dos combustíveis fósseis para a utilização de energias renováveis. À necessidade de reduzir as emissões juntam-se os riscos geostratégicos de combustíveis produzidos em zonas hostis. Já não se põe sequer a questão do preço, pois as energias renováveis são hoje muito competitivas.
O que é que impede, então, uma transição energética mais rápida? Os principais obstáculos residem na forma como a rede elétrica foi organizada ao longo dos tempos.
A eletricidade é um bem muito peculiar, por ser difícil e dispendiosa de armazenar. A eletricidade é, talvez, o bem mais perecível. Tem, normalmente, de ser consumida no instante em que é produzida, sob pena de ser desperdiçada. Por outro lado, o consumo é muito inconstante. Ao longo do dia, ele varia com os turnos fabris, os horários dos serviços ou os consumos residenciais. Ao longo do ano, varia com as necessidades de aquecimento e arrefecimento dos edifícios. Essa variabilidade não significa imprevisibilidade, pelo que a rede elétrica foi concebida para lidar com essa procura variável por meio de uma oferta controlável.
A rede elétrica foi também concebida de forma centralizada. A produção de eletricidade em grandes centrais beneficiou de economias de escala, pelo que a rede rapidamente evoluiu para uma rede unidirecional, em que um número reduzido de grandes centrais satisfazia o grosso da procura elétrica, sendo depois essa eletricidade distribuída através de uma rede cada vez mais capilar.
Todo o panorama mudou com a entrada das energias renováveis na rede. O número de unidades produtoras disparou, nomeadamente de eólicas e, mais recentemente, de fotovoltaicas. A produção deixou de estar concentrada num número muito reduzido de centrais, para estar distribuída por quase todo o território, em milhares de pontos de injeção, que contam, também, com a pulverização de pequenas unidades de produção fotovoltaica, muitas das quais ligadas a redes de baixa tensão, em zonas residenciais.
As fontes de energia renováveis, com exceção da hídrica, não são despacháveis – não produzem quando queremos, mas antes quando dita a natureza. Assim, a gestão da rede torna-se muito mais desafiante para satisfazer as necessidades da procura, garantir a segurança de abastecimento e evitar falhas generalizadas de eletricidade, alternadas com excessos de produção de energia não utilizada.
A quadratura do círculo só será possível quando a uma oferta variável fizermos corresponder uma procura ajustável. Se não podemos controlar por completo a oferta, temos de flexibilizar a procura.
E como conseguir essa flexibilidade da procura? Com redes elétricas inteligentes e digitalizadas, em que cada equipamento, seja ele um ativo energético de produção, armazenamento ou consumo altere o seu padrão de uso em função da necessidade da rede. Assim, cada equipamento poderá, de forma agregada, “negociar” com a rede a energia de que pode dispor e em que condições. Por exemplo, há que perceber qual o momento ideal para o carregamento de um veículo elétrico ou para o funcionamento de uma bomba de calor.
Vários países europeus estão a desenvolver os mercados de flexibilidade. A 14 de março, a Comissão Europeia publicou o regulamento que atualiza a configuração do mercado elétrico da União, procurando incrementar a flexibilidade dos sistemas energéticos como resposta do lado da procura, com a participação ativa do consumidor final, que passa a ser um agente ativo do sistema elétrico.
Portugal, apesar do mercado incipiente, é um dos países que apresentam elevado potencial. A legislação abre, assim, caminho às soluções de flexibilidade, conforme consta no Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro – já revertido no enquadramento regulatório nacional, com várias propostas de regulamentos colocadas em consulta pública pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), sobre os temas da flexibilidade e da emergência dos mercados locais de energia.
Em Portugal, surgiu também o primeiro projeto-piloto. A E-Redes – principal operador de rede de distribuição em Portugal – lançou o projeto FIRMe, em parceria com a empresa britânica Piclo. O objetivo é testar a flexibilidade, analisar os benefícios, identificar oportunidades e promover novas dinâmicas de mercado, nomeadamente mercados locais de energia com a participação de múltiplos agentes, incluindo o consumidor final.
Assim, quando a rede necessita de auxílio local, por exemplo na gestão de congestionamentos ou na estabilização de perturbações causadas pela variabilidade das fontes renováveis, pode solicitar o apoio de um agente de mercado – por exemplo, um agregador –, que terá a capacidade de atuar nos equipamentos flexíveis de que dispõe. Esse agregador recompensa, então, o consumidor final pela flexibilidade disponibilizada, que deixa, assim, de ser um consumidor passivo e passa a ser um agente ativo do sistema elétrico, ao disponibilizar ao serviço da rede os seus ativos energéticos mediante um conjunto de preferências ou restrições de uso.
São múltiplas as vantagens das novas dinâmicas associadas à flexibilidade do lado da procura para acelerar a transição energética, com abordagens inovadoras que visam a criação de novos mercados energéticos, com múltiplos agentes e valorização de ativos existentes, enquanto minimizam investimentos avultados.
Para que se efetivem, porém, há que existir uma combinação de vontades: do Governo e do regulador – para que produzam enquadramentos legais e regulatórios favoráveis e facilitem o investimento no robustecimento e digitalização das redes elétricas; da Administração Pública – que se quer robustecida e capacitada para dar resposta rápida aos licenciamentos, em consonância com a legislação e a regulamentação em vigor; e dos operadores de rede – que são peça-chave para a operacionalização, possibilitando a interoperabilidade entre os seus sistemas e as plataformas dos agentes de mercado, capazes de gerir e otimizar os múltiplos fluxos energéticos e de informação.
Andreia Carreiro é diretora de inovação estratégica da Cleanwatts. Doutorada em Sistemas Sustentáveis de Energia, foi diretora regional de Energia no Governo dos Açores. É também co-fundadora da empresa Kinergy, integra a organização Future Energy Leaders Portugal e é co-promotora da iniciativa Mulheres na Energia.
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