Por ocasião das celebrações do 25 de Abril, o Sr. Presidente da Assembleia da República fez um número grandiloquente de transfiguração. O mesmo cavalheiro que, há menos de dois anos, numa entrevista a Ângela Silva, aqui no Expresso, disse ter sido "o cão de fila" (palavras dele) de José Sócrates e que declarou que nunca se apercebeu de nada – o nada refere-se ao mais grave ataque à democracia e à separação de poderes depois do 25 de Novembro, às mãos de um primeiro-ministro socialista – gritou, na semana passada, na casa da democracia e em defesa da Nação e das instituições, "Chega! Chega de envergonharem o nome de Portugal. Chega de degradarem as instituições".
Ou seja: o "cão de fila" agressivo que gostava de "malhar na direita" virou virgem vestal indignada que gosta de proteger a democracia. É um número admirável de prestidigitação.
Neste circo, também temos acrobacias. Passam hoje 2.711 dias desde o dia em que o PS chegou ao governo que ficará para a história como a geringonça. Geringonça é, segundo o dicionário, "coisa ou construção improvisada ou com pouca solidez", mas lá que transportou duradouramente o PS, PCP e o BE, transportou. Chapeau!
Para que este número se realizasse, porém, e porque a construção da coisa foi cara, também vieram os ilusionistas de rua. Basicamente, a ideia foi sacar dinheiro à assistência, deixando-lhes a ideia de prodígio. Neste caso, a ilusão foram os acordos entre o PS, a extrema-esquerda e a esquerda populista. E a sua peça central, invisível nos papéis, foi a reversão da privatização do circo do trapézio voador, mais vulgarmente conhecido por TAP. A receita sacada em tal ilusão? 5 mil milhões de euros, a fazer fé no que nos disse o presidente da Parpública. Basicamente, quase 2 milhões de euros por dia. Todos os dias. Desde há 8 anos. Hear! Hear!
Desvendo o truque: passo 1, o Governo PPD/PSD-CDS privatiza a TAP em 2015; passo 2, o PS perde as eleições nesse ano e, para chegar ao poder, negoceia com o PCP e o BE um conjunto de reversões, onde a TAP se destaca; passo 3, torram 5.000.000.000 euros de dinheiro dos contribuintes; passo 4, privatizam novamente a TAP, como anunciaram esta semana.
Maçador? Nada disso. Pelo meio o entretenimento não faltou. Bónus para o topo, despedimentos para as bases, viaturas de luxo, nomeações, nepotismo, ocultações, indemnizações milionárias, demissões, interferências do governo, manipulação do Parlamento. Um grande show de malabarismo de deterioração das instituições, da separação de poderes, da decadência política e de desperdício do dinheiro público. No cartaz? Pedro Nuno "pernas bambas" Santos, Hugo "o marcelo é nosso amigo" Mendes, João "pistoleiro do Twitter" Galamba e Frederico "bicicleta louca" Pinheiro: eis a equipa de "responsáveis" a quem António Costa achou por bem entregar um dos seus dossiers mais críticos, o do circo do trapézio voador.
Durante este espectáculo, nada disto tem chocado muito a ética republicana dos socialistas, não viram vislumbre de degradação das instituições algum e ninguém se sentiu envergonhado. Aliás, na Sexta-feira, no palco ao lado, enquanto o país aguardava o solilóquio carregado de simbolismo de Galamba, que só aconteceu no Sábado, Eurico, o "já teve Dias mais Brilhantes", informou que estes detalhes inconvenientes só servem para ofuscar o brilho da governação socialista.
E eis-nos chegados ao último episódio disponível nas plataformas de streaming: um patusco, adjunto de um lunático, foge de bicicleta com um computador às costas, e o governo chama o SIS. É caso para perguntar: como não amar este país?
Por causa disto, parece que há por aí quem tenha ficado atónito. Confesso que não percebo a surpresa. O ministro é o Galamba, caramba. E o adjunto foi assessor parlamentar do Bloco de Esquerda em 2013, que o Pedro Nuno Santos contratou para o ministério, onde também tinha sido ministro. Surpresa? Eu só vejo poesia. Justiça poética. A TAP é do povo, ainda ouço Pedro Nuno dizer exaltado. E no fundo, em crescendo, ouve-se A Internacional, enquanto o sol se põe, antecipando mais um amanhã que canta.
Mais a sério e voltando ao início: o PS está preocupado com a qualidade da democracia por causa dos populistas?; o PS acusa o PSD de tibieza e conivência com os populistas?; o PS é a muralha de aço aos populistas? Deixem-se de hipocrisias. Foi o PS que, primeiro, trouxe os extremistas e os populistas da esquerda para a esfera do poder, para ganhar no Parlamento o que tinha perdido nas urnas. É o PS a causa da erosão da democracia e o combustível dos populistas, com a sua governação lesiva dos interesses nacionais nas últimas décadas.
O PS é o alfa e os populistas o ómega do estado a que chegámos. São as elites corruptas – no sentido financeiro, mas também, e sobretudo, moral – a ignição dos populistas, um pouco por todo o lado. E por cá, essas elites estão, não exclusivamente mas maioritariamente, concentradas no PS.
Há 19 anos, num acto aplaudido e salivado pelo PS, o então Presidente da República, por minudências quando comparadas com o charco em que o país está hoje mergulhado, disse que "(...) o País assistiu a uma série de episódios que ensombrou decisivamente a credibilidade do Governo e a sua capacidade para enfrentar a crise que o País vive. Refiro-me a sucessivos incidentes e declarações, contradições e descoordenações que contribuíram para o desprestígio do Governo, dos seus membros e das instituições, em geral. Dispenso-me de os mencionar um a um, pois são do conhecimento do País. A sucessão negativa desses acontecimentos impôs uma avaliação de conjunto, e não apenas de cada acontecimento isoladamente. Foi essa sucessão que criou uma grave crise de credibilidade do Governo (...)". Depois disso, dissolveu o Parlamento e convocou novas eleições.
Hoje, enquanto escrevo estas linhas, nem Costa nem Marcelo se ouviram ainda. Vale a pena, já que o espírito da semana passada era o das relações luso-brasileiras, lembrar um dos últimos Presidentes decentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso: "Nem o Presidente nem os ministros são acrobatas de circo para fazer piruetas, receber aplausos e desaparecer nos bastidores." Afinal, em matéria de democracia, parece que Portugal ainda tem muito a aprender com os brasileiros.
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes