Opinião

Vigiar e punir ou educar e prevenir?

Hoje assistimos, com muita preocupação, à transferência do exercício da Justiça para fóruns e pelourinhos alimentados pelas redes sociais e por alguns sectores de uma imprensa nem sempre objetiva e isenta, mas sempre muito apressada, porque o espetáculo tem de continuar, afirmam neste artigo coletivo Ana Benavente, Elisa Costa Pinto, Manuela Gonzaga, Maria Cantinho, Maria Teresa Sá, Raquel Varela, Rita Garcia Pereira e São José Lapa

A conquista histórica do princípio da presunção de inocência é, apetece escrever, visceral no modelo de sociedade pela qual tanta gente antes de nós lutou e intrínseca aos valores que defendemos até hoje. Perante a justiça, mas também perante a sociedade, um acusado é inocente até prova em contrário, cabendo ao acusador demonstrar a sua culpa. A presunção de inocência não é só um princípio jurídico, é um modo de compreender a sociedade que rejeita a culpabilidade a priori e o escândalo como meio de nos relacionarmos.

Julgamentos selvagens representam não um avanço progressista, mas um retrocesso civilizacional. Remetem-nos para as fogueiras da Inquisição, para a exposição no pelourinho, a lapidação. Espetáculos sangrentos que foram sendo oferecidos às multidões, como prova de que a “justiça” não dormia e zelava pelo bem de todos.

Hoje assistimos, com muita preocupação, à transferência do exercício da justiça para fóruns e pelourinhos alimentados pelas redes sociais e por alguns sectores de uma imprensa nem sempre objetiva e isenta, mas sempre muito apressada porque o espetáculo tem de continuar.

Hoje assistimos, com muita preocupação, à transferência do exercício da justiça para fóruns e pelourinhos alimentados pelas redes sociais

Falemos de comportamentos e abordagens abusivas. Qual é o âmbito e a abrangência destes comportamentos abusivos? Aparentemente, imenso e universal. Analisemos o mundo laboral. Todos os estudos, em Portugal e na Europa, demonstram que o assédio está generalizado: nos hospitais, nas escolas, nas universidades, nos jornais, nas empresas, nas fábricas. Acrescente-se que, nos locais onde predomina a precariedade, o assédio existe e está diretamente associado ao medo de perder o emprego e à competição feroz. Vigora a ameaça e a perseguição, mas também a delação. E o ressentimento, pela ausência de reconhecimento interpares. A denúncia e o julgamento selvagem não são uma “consequência inevitável da justiça que não funciona”, mas um sintoma de uma sociedade doente, que à cooperação contrapõe a competição feroz, por não conseguir ou saber assegurar a todos um lugar decente, no trabalho e na vida.

Tomemos o pulso à frieza dos números: entre 500 e 750 mil trabalhadores em Portugal dizem sofrer de assédio moral (10 a 15% em média dos trabalhadores). Quem assedia quem? Maioritariamente (mais de 80%), as hierarquias. Porém, não há apenas circunstâncias de abuso de poder. Entre 10 e 20% são casos praticados por alunos contra professores, entre colegas e, no caso da saúde, por utentes contra enfermeiros e médicos.

Como enfrentar a tragédia de tais dinâmicas? Vigiando e punindo, ajuda? A ver. Se existirem comissões de queixas compostas por apenas três pessoas, e todos os trabalhadores fizerem denúncias, precisaremos de 1,5 a 2 milhões de pessoas para analisar todas as queixas…

Que mais nos diz este número? Devem existir espaços formais de denúncia, onde haja salvaguarda absoluta de acusadores e acusados. Mas como serão compostas as comissões? Nomeadas por quem? Quem as controla? Proporcionarão mais um exercício de assédio, culpando o eventual concorrente ao lugar x ou y? Ou desprezando a queixa fundamentada do “inimigo”, acolherão de melhor grado a queixa infundada do “amigo”?

O assédio não pode ser enfrentado sobretudo no campo punitivo e da repressão, sob pena de nos transformarmos numa sociedade de denunciantes e vigilantes. Tivemos 300 anos de Inquisição e 48 de Estado Novo. Não podemos reduzir-nos a uma sociedade que enfrenta todos os seus problemas pela denúncia e pela repressão – resposta social típica de ideologias totalitárias –, em vez de irmos às causas sociais.

Como? Em primeiro lugar, é preciso enfrentar as relações nos locais de trabalho onde os salários são baixos, não há progressão nas carreiras, a avaliação é individual, sem critérios coletivos e cooperativos, a concorrência é feroz e o desemprego, um cutelo. Somos solidárias com todas as lutas levadas a cabo, democraticamente, pela melhoria das condições de trabalho em Portugal. É nesta solidariedade que nos revemos. Quando as regras de progressão nas carreiras são claras e vistas como justas, o diálogo é promovido, os erros ou as falhas são debatidos abertamente, sem carácter punitivo, mas de transformação e correção, o ambiente de trabalho é saudável.

Não podemos continuar a repousar numa justiça que, pelas custas judiciais, recusa o acesso à esmagadora maioria dos membros da sociedade

Em segundo lugar, exigimos que a justiça funcione. Mas para tal, tem de ser gratuita e célere. Não podemos continuar a repousar numa justiça que, pelas custas judiciais, recusa o acesso à esmagadora maioria dos membros da sociedade.

Em terceiro lugar, não acreditamos num jornalismo sensacionalista, ligeiro, não investigativo, antidemocrático, que se arvora em tribunal e ressuscita os linchamentos morais.

Em quarto lugar, mas não em último, acreditamos que a educação é fundamental para promover relações saudáveis entre iguais. O espaço público em nada tem favorecido essa educação. E a massificação de mensagens difundidas nos media onde as mulheres são sistematicamente mercantilizadas, apresentadas como adornos, ou então ilustram a vitimização de que foram alvo também não promovem tais relações. Sem duvidarmos por um momento que continuam a ser as mulheres o elo mais fraco, esta circunstância tão redutora retira-lhes, retira-nos, o papel de sujeitos de direitos e responsabilidade.

Mas a tragédia que se desenrola diante de nós é mais funda e mais radical. Está em causa todo o edifício social e democrático, e os dados sobre a desigualdade confirmam-no.

A suspeição generalizada, a denúncia sem factos, a inversão do ónus da prova, o desrespeito pela presunção de inocência menorizam as vítimas e fazem de nós coautoras de um estado de exceção permanente. Não o somos. Lutamos por relações de amor, livres, entre adultos conscientes. Recusamos o modelo de um polícia, uma denúncia e uma comissão para “proteger” cada ato da nossa vida.

A confusão mediática entre sedução, galanteio, assédio moral, assédio sexual, violação é intolerável numa sociedade complexa e desenvolvida

Por outro lado, a confusão mediática entre sedução, galanteio, assédio moral, assédio sexual, violação é intolerável numa sociedade complexa e desenvolvida. O relativismo abre as portas ao puritanismo moral que recusamos, mas também à desvalorização – gravíssima – do crime de violação. E permite que uma condenação por esse mesmo crime (a que se atribui regularmente pena suspensa!) seja nota de rodapé de um tabloide, enquanto casos de alegado assédio abrem noticiários nacionais. Essa equiparação menoriza-nos e põe-nos em perigo. É gravíssimo deixar que crimes como violação sejam, numa névoa, equiparados a um encontro falhado onde não houve sequer aproximação física.

Relações eróticas e afetivas entre adultos incluem a sedução e o seu falhanço. Incluem erros e, também, más interpretações, de parte a parte. Há assédio, mas nem tudo é assédio. Se um abraço, um galanteio, um toque, uma palavra podem ser imediatamente interpretados como assédio e o seu autor (ou autora) acusado/a nas redes sociais e na imprensa, e consequentemente suspenso do trabalho, tornam-se quase impossíveis relações livres.

Também existem conflitos, normais, nos locais de trabalho. Amargas roturas de relações. Confrontos entre e com pessoas mais e menos agradáveis, mais e menos capazes de lidar com conflitos. Será lícito policiarmos cada gesto, cada palavra? E não estamos a falar de chantagem e abuso de poder, com ou sem componente sexual, que repudiamos como inaceitável e repugnante. Mas também aí espreita o perigo de aceitar normalizar como vítima quem diz “sim” para obter vantagens, pois deixa de fora quem diz “não” e não as obtém, nem as vantagens, nem a causa, nem o poder para “se vingar”.

Finalmente, não aceitamos um cenário geral de “cancelamento”, de ausência de liberdade para pensar criticamente, de imposição de visões do mundo. Não aceitamos que a luta pela emancipação das mulheres, que é uma luta da humanidade e não contra a humanidade, seja usada para pôr mais um prego no caixão do pensamento livre.

O patriarcado e as raízes da misoginia, construídos durante séculos de desigualdades confortadas por religiões, não se resolvem com regulamentos, com vigilância e punição.

O mote não poder ser “vigiar e punir”, mas educar, prevenir e cooperar para transformar

Vimos de longe e não somos niilistas. Hoje em Portugal, graças às lutas na I República, no Estado Novo e na Revolução, até ao referendo do aborto, assistimos a progressos enormes, que não podemos ignorar. A ideia de transformar todos os homens em “perigosos machos alfas” é uma caricatura que ignora todos os outros. Milhões de homens que vivem com e para mulheres, que sentem como companheiras. Em paridade. É neste combate, neste acerto e neste encontro, o da igualdade construída, com todos os erros que todos cometemos, que nos revemos. O mote não poder ser “vigiar e punir”, mas educar, prevenir e cooperar para transformar.

Autoras:

* Ana Benavente, socióloga; Elisa Costa Pinto, professora, critica literária, promotora de leitura; Manuela Gonzaga, historiadora e escritora; Maria Cantinho, professora, poeta e ensaísta; Maria Teresa Sá, psicóloga e psicanalista, professora no Ensino Superior; Raquel Varela, historiadora e professora universitária; Rita Garcia Pereira, advogada; São José Lapa, atriz e encenadora.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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