Opinião

Sair da armadilha da estupidez

A busca pelo extraordinário dentro do previsível, pelo episódio de comicidade codificada ou de alvoroço planeado, premeia uma política que só sabe conceber-se entre a performance elitista e a publicidade, a provocação e o incidente repetitivo. Em nome da “pluralidade da representação”, nesta economia comunicacional existe todavia lugar para todos: a quem não protagonize tais momentos cabe o papel empolgante de comentar as parvoíces ou as provocações dos outros

O facto de Bolsonaro ter tido “a rara fineza” de não sujar o diploma do prémio Camões com a sua assinatura (a expressão é do premiado, Chico Buarque), deixando a Lula a oportunidade de preenchê-lo e entregá-lo, em conjunto com o presidente português, proporcionou um dos mais felizes momentos destas celebrações do 25 de abril. Toda a cerimónia foi comovente. E as palavras de Chico, sensíveis e certeiras (ele que, como outros, traz nas veias “sangue do açoitado e do açoitador”) foram talvez o mais emocionante alerta contra a estupidez e o obscurantismo dos inimigos da democracia.


Ontem, em Lisboa e no Porto (e certamente noutras cidades), a primavera cantou-se. Foi bonita, a festa. Estava sol, as ruas plenas de gente, as manifestações foram populares e intergeracionais, preenchidas por velhas e novas causas, organizações de sempre e coletivos informais recém-criados, faixas profissionais e pancartas artesanalmente desenhadas à mão, mensagens programáticas e denúncias das desigualdades, aspirações diversas cantadas, ditas, dançadas.

E no entanto, apesar de curtas reportagens sobre as marchas de rua e da cobertura dos discursos no Parlamento, quem tivesse visto os principais telejornais ficaria com a ideia de que o evento do dia teria sido a patética cena da extrema-direita na Assembleia da República, macaqueando os modos e as mentiras mais básicas de Bolsonaro. Mas teve mesmo toda essa importância?

Em geral, a cobertura televisiva da política tende a operar através de um afunilamento temático e da promoção de uma visão cínica, reduzindo aquela ao espaço fechado de agentes profissionais em disputa no “mercado” da atenção e da representação, em lugar de a política aparecer como a ampla arena onde se exprimem as diferentes relações de força social, de projetos, ideias e formas de organização. Prevalece, assim, o que melhor encaixe numa espécie de infindável comentário auto-referencial sobre o acontecimento ou a especulação da semana. Para existir comunicacionalmente, a intervenção política deve falar “do que interessa aos políticos” (como diria Bourdieu). De cada discurso parlamentar, selecionar-se-á para reproduzir apenas aquela curta frase que caiba nesta categoria. Se porventura ela não existir, é provável que o discurso seja percebido como deslocado, como “pouco político” ou irrelevante.


A política estimulada por esta lógica não é a política do conflito social, a que os partidos e outras instituições dariam voz. É uma política de competição entre partidos ao sabor dos supostos “recados” lançados uns aos outros (decifrados aos leigos por especialistas em “recadologia”), complementada pelos “ralhetes” do presidente do parlamento. Por isso, esta lógica beneficia o soundbyte e não a desconstrução crítica; o acontecimento e nunca a análise dos processos; o escândalo e não a substância dos temas. E incentiva a reprodução dos mesmos códigos de linguagem, de formas de expressão, de estafadas fórmulas de dizer o mundo.


A busca pelo extraordinário dentro do previsível, pelo episódio de comicidade codificada ou de alvoroço planeado, premeia uma política que só sabe conceber-se entre a performance elitista e a publicidade, a provocação e o incidente repetitivo, como se tudo o mais fosse entediante e como se esta forma de excitante banalidade permanente não fosse a mais entendiante de todas. Em nome da “pluralidade da representação”, nesta economia comunicacional existe todavia lugar para todos: a quem não protagonize tais momentos cabe o papel empolgante de comentar as parvoíces ou as provocações dos outros.


Querem maior favor ao oportunismo da extrema-direita, que alimenta e é alimentado pelo mercado mediático da superficialidade? E maior amparo a quem procura reduzir o campo das escolhas à opção entre o “ruído dos fascistas” e a grande frente dos “democratas liberais” liderados pelo centro?

Não será o 25 de abril o oposto de tudo isto? Não foi a nossa revolução o momento em que a política passou a ser assunto de todos e todas, “até dos políticos”, e não o terreno exclusivo dos profissionais do “jogo”? Para sairmos desta perversa e conveniente prisão, é essencial combater esta entorse democrática, quer no modo como o campo mediático ocupa o tempo comunicacional dedicado à política (que tem efeitos de realidade), quer a que resulta deste próprio modo de política.

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