Foi para isto que se fez o 25 de Abril? A resposta a esta pergunta depende sobretudo de duas coisas: daquilo a que o "isto" se refira, e da disposição e da posição do respondente. E, já agora, da prudência necessária por força da lei de bronze em matéria de vontade popular: não há vontade popular. Às vezes, o somatório de vontades individuais é convergente; mas é o máximo de colectivização possível numa sociedade.
Falemos de sociedade. Entre os que nasceram e os que cá chegaram depois de 1974 em movimentos migratórios desligados dos processos de democratização e descolonização, conta-se hoje mais de metade da população residente em Portugal. Ou seja, mais de 50% dos portugueses não têm memória pessoal do processo de construção democrática. E entre os que a têm, talvez já só 20% do total somará a essa memória pessoal a memória de vida no período anterior.
Digo isto, por duas razões: porque, para a construção de significado, a memória importa e porque a história contada sobre o passado também. Se a memória é marcada pela subjectividade da experiência pessoal, do lugar ocupado na história, da expectativa criada, a história contada é determinada, sobretudo, pelo poder narrativo dos vencedores. E, em Abril, neste particular, quem venceu, não sem colaboração por omissão ou por adversativa de uma parte da direita, foi a esquerda: que valoriza mais a igualdade do que a liberdade, que valoriza mais a revolução do que o pluralismo, que valoriza mais a luta de classes do que a prosperidade.
Mas dizer isto é diferente de dizer que foi essa a motivação - a do caminho para o socialismo, absurdamente inscrito no preâmbulo da Constituição, contra a qual só o CDS votou - dos que há 49 anos saíram à rua e, com cravos vermelhos e brancos na mão e na lapela, celebraram o tal dia inteiro e limpo. Porque assumir isso seria presumir que o somatório de vontades foi monolítico, canhestro. E não foi. Ou, até, que o poder, então, foi também ele uno, coerente, socialista. E nunca foi.
Mas, então, foi para isto que se fez o 25 de Abril? Se o "isto" é a comparação do então com o agora, em matéria de liberdades cívicas e políticas, então sim. Se o "isto" é a comparação do então com o agora, na melhoria generalizada de condições de saúde, educação e bem-estar, então sim. Se o "isto" é a comparação do então com o agora, em matéria de liberdade de imprensa e opinião, de respeito pelas diferenças e pelas minorias, de promoção da igualdade de acesso à cidade entre homens e mulheres, então sim. Se o "isto" é a comparação do então com o agora, em matéria de independência dos poderes, de justiça e de prisões arbitrárias, então sim.
Mas se o "isto" é a comparação entre o hoje e o possível, entre o hoje e o melhor, entre o hoje e o vital, então não. Cumprir Abril, à distância de meio século, a partir do colapso da antepenúltima ditadura na Europa ocidental, no período de maior prosperidade do Ocidente, apenas a partir daqueles - muitos; todos - indicadores de desenvolvimento é pouco, e coisa de gente que desistiu de querer mais.
Explico de outra forma. Portugal foi o país a inaugurar a terceira vaga de democratização, como Huntington a definiu. Essa condição inaugural é positiva, mas vale a pena recordar que Portugal foi apenas o antepenúltimo país da Europa ocidental - ou a oeste da cortina de ferro, se preferirem - a chegar à democracia. Há nesta condição, de primeiro dos últimos e quase último dos primeiros, uma inexorabilidade pouco entusiasmante. Se é verdade que Abril pôs fim ao tormentoso pesadelo da autocracia do Estado Novo, ao fim de quase 48 anos de democracia liberal (estou a contar a partir de Novembro de 1975, claro), o estado deteriorado – para não dizer comatoso - do nosso regime, parece menos um sonho e mais uma insónia.
Na edição em papel do Expresso desta semana lê-se na primeira página que "Sócrates já não vai ser julgado por crimes de falsificação, [já que] os crimes prescrevem em 2024 e em 2025, e o novo prazo para recorrer torna impossível uma decisão em tempo útil". Lê-se ainda, em jeito de compensação, que o "ex-PM ainda pode ser julgado por corrupção e branqueamento". Sublinho o ainda.
Esta semana, o Governo mentiu ao Parlamento. Primeiro, a um pedido da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP para aceder a um parecer, Ana Catarina Mendes respondeu: "que a sua divulgação envolve riscos na defesa jurídica da posição do Estado". Esta afirmação, neste contexto, tem que presumir um documento em concreto. Só numa ditadura é que esta invocação, em resposta a um pedido do Parlamento, se pode fazer no geral, sem que a resposta parte da análise objectiva de um documento existente. Porém, depois, Fernando Medina veio assegurar que, afinal, "não há parecer nenhum". A que se referia, então, Ana Catarina Mendes? Qual dos dois mente, não sabemos, mas uma coisa é certa: o Governo mentiu. E o Primeiro-ministro calou. E, como diz o povo, quem cala consente.
A erosão - entre o festivo, o displicente e o intencional - da autoridade do Estado, expressa na falência da Justiça e na ausência de respeito pela separação dos poderes é tudo menos democrático, no sentido constitucional que lhe atribuímos, claro. Não foi para isto que se fez o 25 de Abril.
E nem os indicadores de desenvolvimento humano, com progressos impressivos em termos relativos e absolutos quando comparados com 1974, entusiasmam muito quando comparados, hoje, em termos relativos e absolutos com os nossos parceiros da União Europeia. Não foi para isto que se fez o 25 de Abril.
É por isso que, no tempo que passa, vale a pena perguntar: para que é que se fez o 25 de Abril? Mas, mais importante ainda: que Abril queremos doravante?
Hoje, ainda é tempo do país se questionar quem é, o que faz aqui, quem o abandonou, de quem se esqueceu. Hoje é tempo de perguntar por si, de saber de nós. E se o mar não trouxer a sua voz, amanhã, depois do adeus à festa, que muitos farão descendo a Avenida, eu proponho que se suba a Avenida. Porque defender a Democracia e a Liberdade faz-se com esforço e na maior parte das vezes em contramão.
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