Já em 1930, John Maynard Keynes, previu que, passados menos de cem anos, os britânicos estariam libertos do trabalho. Segundo o famoso economista inglês, a automatização exponencial e a subida do nível de vida seriam tais que, num futuro longínquo, algures em 2015, os afortunados habitantes do Reino Unido, olhariam com comiseração para as gerações anteriores que eram obrigadas a ter um “emprego” e a “trabalhar toda a semana”.
Olhando para a situação atual, estamos numa encruzilhada. Irá a tecnologia servir para consolidar a sociedade atual, centrada no trabalho, confinando os nossos filhos (e depois os netos) a uma massa de “pessoas descartáveis” sem qualquer papel no processo produtivo? O trabalho clássico será substituído pelos robots, o cérebro pelo computador, a comunicação, incluindo a presencial, substituída pelas redes sociais?
Dar-se-á, claramente, o fim do trabalho como forma de socialização e afirmação na polis, e daí assistirmos ao declínio dos partidos trabalhistas ou socialistas um pouco por todo o Ocidente como instrumento da representação democrática? Será que estamos a assistir à uberização da mão- de-obra? Com todo o novo aparato tecnológico à nossa volta, os seres humanos serão dispensáveis, primeiro, como trabalhadores e, no futuro, provavelmente, enquanto cidadãos?
Muitos de nós tornar-se-ão ultra polivalentes trabalhando em vários fusos horários simultaneamente, enquanto a China ou a Índia continuarem a crescer. Um trabalhador poderá assegurar serviço ao cliente para um empregador londrino, fazer prospeção de mercado para um patrão em Tóquio e descobrir nova ideias para uma marca em Berlim. Poderemos ser todos nómadas digitais, como se diz agora?
Estas são algumas das questões a que importa responder para ultrapassar a aludida encruzilhada.
É que, apesar de muitos terem considerado o trabalho como algo impróprio para cidadãos livres ou como castigo pela expulsão do Paraíso, o valor do trabalho sempre foi o pilar da economia, desde Locke, Smith, Ricardo ou Marx. Locke, aliás, na sua obra Os dois Tratados sobre o Governo Representativo, dizia mesmo que é “o trabalho que torna a natureza útil. É o trabalho humano que acrescenta valor à natureza (…) Aquele que se apropria da terra através do seu trabalho não diminui, mas antes aumenta o bem comum da humanidade”.
E também o pilar da sociedade, como o evidenciou o cristianismo, ao valorizar o trabalho na sua dimensão subjetiva, como afirmação da graça de Deus sobre todos os humanos. O trabalho veste o Homem, liberta-o da necessidade (antecipando o arbeit macht frei de Marx, ignominiosamente reproduzido pelos nazis à entrada dos seus campos de concentração).
É certo que, na esteira de Keynes, vêm agora alguns famosos de Silicon Valley defender a inevitabilidade do fim do trabalho e o pagamento de um salário mínimo a todos como compensação. Mas se considerarmos o modo como as grandes empresas de novas tecnologias tentam fugir aos impostos, não sei onde os Estados, cada vez mais frágeis, vão encontrar a receita para sustentar essa utopia de um salário para todos, independentemente do trabalho (a nova vulgata marxista de a cada um segundo as suas necessidades numa terra edílica de leite e mel). É certo, ainda que, se olharmos para a população ativa de muitos países, incluindo o nosso, os números parecem evidenciar um aumento da população empregue.
Todavia, e paradoxalmente, estamos a assistir, pelo menos no Ocidente, ao fim trabalho. O papel do homo laborans (Hannah Arendt), já não é um imperativo biológico, uma forma de sobrevivência para a espécie. Passar o dia a enviar mensagens de correio eletrónico num qualquer escritório, não tem nenhuma semelhança com a atividade do caçador-recolector de que dependia a subsistência dos nossos antepassados Sapiens-Sapiens ou Neanderthal. O trabalho apresenta-se apenas como mais uma invenção da qual a humanidade poderá vir a prescindir.
Em suma, não poderemos saber o que o futuro nos reserva, quanto mais como serão as nossas sociedades daqui a umas décadas. Mas poderemos ter uma certeza, a classe média, associada ao mundo do trabalho, como o conhecemos, poderá não existir. E ir para além do trabalho poderá ser, infelizmente, o fim da classe média. E o fim da classe média, muito provavelmente, o declínio das democracias demoliberais.
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