O poder, enquanto conceito, permanece um imbróglio teórico, com múltiplos significados que se manifesta diariamente nas nossas vidas. Um dos tentáculos do poder é o controlo da informação e, cada vez mais, a forma como essa informação é transmitida determina ou condiciona determinadas ações.
Se, por um lado, a informação veio elucidar e contribuir para mais conhecimento, por outro lado veio também alimentar um monstro ao qual chamaremos desinformação. Para combater esta onda de desinformação foram criados mecanismos de verificação de factos e outros canais de desmitificação ou de debunking. Estes esforços são muito importantes, mas carecem de uma discussão sincera sobre o poder.
Compreender como funciona o poder na era da desinformação é essencial para recuperar a nossa autonomia e a capacidade individual de pensar e analisar criticamente. Os meios que se denominam como especialistas de verificação de factos têm, igualmente, os seus interesses para apresentarem a sua versão da verdade, por forma a que se torne universal. Por isso, até nas democracias é necessário um escrutínio contínuo, algo sobre o qual vários filósofos políticos nos advertiram.
Num ensaio escrito em 1964, Lewis Mumford identifica as técnicas autoritárias vis-à-vis as técnicas democráticas no decurso da História, argumentando que nas nossas sociedades as técnicas autoritárias estão a tornar-se predominantes, acumulando mais poder num pequeno grupo da sociedade. Esta dominância assenta num contrato com a sociedade, a que Mumford denomina contrato social democrático-autoritário, o qual garante uma fatia de bolo para todas as pessoas em troca da adesão a um sistema que exclui todas as alternativas possíveis. Para o autor, os benefícios consistem em inúmeros bens materiais, bem como estimulantes intelectuais e emocionais providenciados pelos meios de comunicação.
Na sua análise, Mumford prevê que a tecnologia e a informação podem ser uma combinação letal para o ideal da democracia, receando que, se permitidas, as técnicas autoritárias poderiam moldar o mundo à sua imagem e a elite dominante acabaria por promover a ideia de que o que é bom para o desenvolvimento destas técnicas é igualmente adequado à sociedade. A ideia que transmite é a falta de autonomia política, uma vez que as pessoas se tornavam dependentes de sistemas tecnológicos complexos que não compreendiam nem controlavam. Esta dependência não só se acelerou, como também está a tornar-se crescentemente invasiva – a tecnologia e os meios de comunicação dominam e influenciam o quotidiano de uma forma quase biopolítica.
Nos últimos tempos, recebi várias mensagens de diferentes pessoas, indagando se na Moldávia eclodirá a guerra civil, se os russos ocuparam o aeroporto, ou se a Transnístria está prestes a ser invadida. O que me surpreendeu não foram as afirmações, mas sim a incredulidade perante os factos que expus. Depois de garantir que está tudo bem, assegurando que tenho contacto diariamente com pessoas de lá e vejo os noticiários locais, os ditos-cujos duvidaram, como se o que havia sido proferido por um comentador num jornal ou numa rede social fosse mais real e verídico do que aquilo que efetivamente acontece no terreno. Esta situação é ilustrativa do poder da informação. As notícias falsas são reproduzidas pelos meios de comunicação, os quais em vez de apresentar factos e uma análise mais objetiva, acabam por contribuir para a alimentação do monstro da desinformação.
A pandemia e, subsequentemente, a guerra na Ucrânia são paradigmas de como as técnicas autoritárias têm sido utilizadas nas democracias, aludindo ao que Mumford previra. As nossas sociedades estão entrelaçadas com um sistema complexo tecnológico que não conseguem acompanhar cognitivamente.
Por outro lado, a desinformação é omnipresente, mas escasseiam analistas com conhecimento suficiente para analisar, contextualizar e aprofundar os temas que se discutem - e aqueles que existem estão fora do proscénio político. Nos Estados Unidos, ou na Inglaterra, por exemplo, nos currículos de quem trabalha para um think tank e tem como foci uma região específica constará um percurso que demonstra, na maioria das vezes, um histórico profissional ou académico num país da região na qual se especializaram.
Portanto, a análise nos think tanks é feita por alguém que esteve no terreno. Claro que isso não invalida que as suas observações sejam absolutamente fidedignas, mas à partida, retratam a realidade mais próxima daquilo que possa ser. Posto isto, é preocupante quando são privilegiadas análises de pessoas que não detêm qualquer histórico na Moldávia, Ucrânia ou Rússia, e nem sequer dominam uma das línguas desses países. É certo que uma apreciação poderá ser feita à distância mesmo sem falar o idioma, contudo, sem outrora ter visitado, trabalhado ou feito investigação num desses países a análise torna-se, de certo modo, vazia. As análises tornam-se, assim, abstratas e desconsideram relevantes nuances culturais, sociais e políticas adquiridas através da vivência in loco.
Para tranquilizar os mais nervosos e propensos ao pânico, a Moldávia mantém-se no mesmo lugar, bem ciente das suas ameaças. Neste momento, não há perigo de invasão militar e frisando as palavras do novo primeiro-ministro, Dorin Recean, o país está alinhado estrategicamente na questão da Transnístria com as autoridades locais e as pessoas, e o desideratum é a manutenção da paz, sejam quais forem as provocações. Todas as conjeturas sobre munições e a presença dos militares russos foram inúmeras vezes referidas, todavia, essa aporia é antiga e a resolução passa sempre pela diplomacia. Apesar das análises apocalípticas de que a Moldávia poderá ser o próximo alvo da invasão, as autoridades moldavas sabem fazer o seu trabalho melhor do que ninguém, principalmente numa altura tão volátil como esta.
O papel de um analista político é, acima de tudo, alertar para a seriedade de um cenário geopolítico e comentá-lo sem manipular as emoções de quem o ouve ou lê. Atualmente, assistimos a uma pressão psicológica que teve início com a covid-19 e que alastra a todas as coisas mundanas, retirando toda a complexidade e reduzindo quase tudo a uma estultificação – nas palavras de Ionesco seria rinocerite.
Kierkegaard escreveu uma parábola famosa sobre um incêndio que deflagrou nos bastidores de um teatro, onde o palhaço que tentou avisar o público foi ignorado. Ominosamente, este discorre que é assim que o mundo acabará, com aplausos de pessoas que acreditam que é uma piada. Este espetáculo ao qual assistimos dirige-se para o mesmo caminho. Um dia destes estaremos todos sentados a aclamar, sem discernir nem contestar criticamente aquilo que ouvimos e lemos, apenas acenaremos resignados ao poder e consabidos de que a tecnologia faz o labor por nós. Quem nos tentar advertir sobre a gravidade da situação não será levado a sério, porque transformámos esta guerra num espetáculo, e poucos se apercebem de que não é o mundo, mas sim a Europa que poderá estar mesmo por um fio. E o fio, o bisturi consegue facilmente cortá-lo
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