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Moedas e o seu projeto de classe para Lisboa

"Em democracia não podemos proibir” disse Carlos Moedas. Quem lidera uma cidade gere equilíbrios entre direitos contraditórios e interesses conflituantes. Deixar isso ao mercado é entregá-la aos mais fortes. Mas, para Moedas, a cidade é um ativo financeiro e o mercado o seu regulador natural. Só é estranho que se diga social-democrata

“Em democracia não podemos proibir”. A tese revolucionária para a ciência política não foi defendida por um adolescente que se julga anarquista, mas pelo presidente da maior autarquia do país. No mundo dos adultos, os autarcas sabem que dirigem uma instituição com o poder de proibir empreendimentos urbanísticos, atividades económicas, estacionamento em determinadas zonas da cidade e por aí adiante.

Mas a proibição de proibir não é, para Carlos Moedas, um revivalismo do Maio de 68. Ele estava a falar do Alojamento Local e, nesse contexto, de desregulação económica. É por isso que quando votou contra a suspensão do AL em mais onze freguesias destacou a “liberdade de empreender”, não o direito à habitação. São escolhas políticas de quem transformou a casa dos lisboetas na matéria prima para o primeiro e maior unicórnio da sua prometida fábrica.

Quem lidera uma cidade gere equilíbrios entre direitos contraditórios e interesses conflituantes. O direito ao lazer e ao descanso, o direito à mobilidade e aos espaços verdes, o direito à habitação e ao retorno do investimento. Deixar às forças do mercado a gestão dos equilíbrios necessários, ainda mais quando atravessamos uma crise mundial de habitação, é entregar a cidade aos mais fortes.

AL para lá do insustentável

Ninguém nega que o alojamento local foi importante para a reabilitação das cidades. Só uma visão primária da política urbana trata como mal ou bem absolutos investimentos deste tipo. O problema é o mesmo que se coloca a qualquer atividade económica: se ultrapassa os limites da sustentabilidade, pondo em risco tudo à sua volta. Ou seja, se a prosperidade de uma determinada atividade põe em causa a de outras e até de outros direitos fundamentais. Se autarcas de todas as cores tomam medidas, mesmo onde o problema é menos agudo, para tornar o AL controlável, limitado e conciliável com cidades funcionais, só um irresponsável não o faz na cidade com mais proporção de AL na Europa.

Quando temos 20 mil casas a servir turistas, o que fazia sentido como investimento torna-se um problema para a comunidade e para a sustentabilidade da própria atividade turística. A externalidades dos AL são pagas por outros. O aumento dos custos em habitação (que funcionam em mancha de óleo, indo muito para lá das zonas onde há maior pressão turística) terá de ser compensado por salários. Os serviços públicos e outras atividades económicas, incluindo o próprio turismo, deixam de conseguir contratar pessoas porque é caro viver na cidade ou perto dela. E os turistas ficam submersos em mais turistas. Isto, claro, para além do ataque ao direito a viver numa casa.

O resultado da ausência de resposta pública será, como tem sido, a expulsão de Lisboa dos mais pobres e de uma classe média que já não conseguem acompanhar os preços. Em vez de querer gerir o equilíbrio entre investimento e habitação, Moedas escolheu um dos lados. E essa escolha é ilustrada pela sua presença na manifestação de umas dezenas de investidores do alojamento local e na ausência na manifestação de milhares que reclamam pelo direito à habitação.

“A propriedade privada é um direito sagrado em democracia”, justificou-se, para dizer que não alinhava numa manifestação de cariz “ideológico”. Mas a escolha de não regular a economia ou limitar o direito absoluto da propriedade não podia ser mais ideológica. Carlos Moedas é, aliás, o político mais ideológico que alguma vez assumiu a presidência da capital do país. Só assim se compreende que, no meio de desta crise de habitação, assuma que “dar respostas aos investidores é a prioridade do meu mandato”. E nem sequer estamos a falar apenas ou especialmente em investidores em habitação.

O regresso de um morto-vivo

No meio do debate sobre habitação, um assunto passou quase despercebido e só encontrei referências a ele nas redes sociais: o anúncio que a Câmara de Lisboa só vai contruir, doravante, nos “bairros desfavorecidos” da cidade. O papel da autarquia não é contrabalançar a pulsão natural para a estratificação do território, mas aceitá-la e promovê-la.

Não foi só por jogo político de um autarca que vê a liderança de uma cidade com a qual não tem qualquer relação afetiva como um mero estágio para a liderança do seu partido ressuscitou o Plano Especial de Realojamento (PER) como política exemplar. É porque, apesar da patine moderna dos unicórnios, não há autarca mais antigo. Isso não se nota apenas nas políticas de mobilidade. Repete-se na habitação.

É óbvio que o PER reduziu o número de barracas. Mas, como disse Tiago Mota Saraiva, foi o programa de habitação mais desqualificado, mesmo para o seu tempo, que se desenhou no século XX, Estado Novo incluído. Em vez de aproveitar a única vantagem de sermos dos últimos a construir habitação social em larga escala na Europa, repetiram-se todos os erros que outros estavam, nos anos 90, a tentar corrigir, construindo guetos onde se juntaram todas as carências. Bairros distantes dos centros, em lotes fechados sobre si próprios, sem transportes e sem dinâmica social. Bairros que são a negação do que dá vida aos bairros, com todos os problemas sociais daí resultantes.

A decisão de circunscrever o investimento em habitação pública aos bairros mais pobres reverte o que foi o entendimento da EPUL, onde autarquias de várias cores venderam habitação a custos controlados no Alto do Restelo, metade de Telheiras, Martim Moniz e por aí fora. O exemplo dado pela vereadora da habitação, que gere um orçamento de centenas de milhões de euros de investimento do PRR, não foi inocente: “eu podia construir no Restelo, mas prefiro gastar o mesmo dinheiro no Beato, uma zona problemática dominada pela droga e pela criminalidade”.

Passando ao lado da estigmatização do Beato, o exemplo importa porque Moedas, na campanha, alinhou com os moradores do Restelo que não queriam famílias de classe média numa das zonas mais caras da capital. E foi assim que um projeto de 400 casas de renda acessível, aprovado no anterior mandato por toda a esquerda, está morto e enterrado. “Quem quer vir para aqui viver procura certas caraterísticas”, explicou o presidente da Junta para quem ainda não tivesse percebido. “Certas cateteristas” é não ter certas pessoas, neste caso de classe média, que podem desvalorizar um bairro que se pretende exclusivo. Este é o modelo de cidade de Moedas. E ele tem, como é evidente, apoio de algumas camadas da população com forte presença em algumas freguesias de Lisboa.

Transformar Lisboa no condomínio da direita

Mesmo com os 343 milhões de euros do PRR, o ritmo de concursos públicos para obras lançados por Moedas não se distingue, ou é pior, do que o de Fernando Medina nos últimos anos do seu mandato, em que não tinha acesso a fundos europeus. O ritmo do PS em Lisboa já estava muito aquém do necessário e isso ajuda a explicar a sua derrota eleitoral, que também resulta de uma mudança demográfica na cidade. Extraordinário é que não melhore quando há muito mais dinheiro disponível para isso.

A escolha ideológica de Moedas é, também, uma escolha eleitoralmente determinada. Mais do que governar Lisboa, Moedas posiciona-se para a liderança da oposição ao governo. Bairros como o Restelo, onde congela a expansão de casas a preços acessíveis, ou as Avenidas Novas, onde no mandato anterior Medina iniciou a construção e reabilitação de mais de 700 casas, têm os preços por metro quadrado mais caros de todo o país. É nestas zonas que vai deixar de construir habitação pública. E não é por acaso. Estas freguesias são os bastiões eleitorais da direita na cidade.

Nem todas as pessoas mais abastadas votam no PSD ou na IL. Nem todos os eleitores destes partidos são abastados, como é evidente (no PSD até será uma pequena minoria). Mas a sobrerrepresentação destas forças nas zonas mais caras da cidade é facilmente verificável no mapa eleitoral. Em poucas cidades do país isso será tão evidente, aliás.

A diferença de um concelho em relação a um país, é que a mobilidade é muito mais rápida. Se viver numa cidade se torna muito caro depressa assistimos ao êxodo dos mais pobres, primeiro, e da classe média, depois. E Lisboa está a caminho de se tornar numa cidade de ricos e expatriados abastados com bolsas de bairros sociais e de imigrantes pobres. Os remediados não desaparecem, porque a sua vida melhorou. São expulsos, porque a sua vida piorou. E a diminuição do peso dos pobres e da classe média em Lisboa favorece, do ponto de vista estritamente eleitoral, Carlos Moedas e aliados.

Disputar o centro

A ideia de que o centro urbano é naturalmente inacessível aos pobres e à classe média (que tem sido repetida através da caricatura de que quereriam viver no Chiado), porque a estratificação social da cidade é uma inevitabilidade da economia de mercado, é um programa político. Assim como a disputa do centro das cidades como espaços interclassistas. E Moedas representa os que acham que o resultado dessa disputa deve ser deixado ao mercado. O que se traduz, na prática, na expulsão de dos pobres e da classe média (sejam portugueses ou estrangeiros) da cidade que dirige, que passa a ser um espaço exclusivo para ricos (sejam portugueses ou estrangeiros). Como presidente, Carlos Moedas tem uma agenda de classe. O que corresponde, aliás, a todo o seu percurso político e profissional.

O problema é que o centro já não é o centro e muito menos o Chiado. Como a inflação dos preços causada por uma política neoliberal para o território funciona em mancha de óleo, a cidade tem de ser entendida muito para lá do concelho. Como lembrou António Brito Guterres, uma mulher solteira da zona de Lisboa com dois filhos que receba o salário mínimo encontra na Chamusca (a 110km do centro) o lugar mais próximo para viver, se quiser gastar metade do seu salário num T2. Se quiser ficar na Área Metropolitana, o lugar mais barato é em Alhos Vedros, onde gastaria 70% do que ganha. Não é difícil perceber a insustentabilidade económica, social e ambiental do programa neoliberal para as cidades que Moedas representa. Até porque a cidade do privilégio não dispensa que aquela mesma mulher venha ao centro, para lá trabalhar.

Para Carlos Moedas, a cidade é um ativo financeiro e a política pública de habitação é um contrassenso socialista. Na sociedade de mercado (diferente da economia de mercado), o mercado é o regulador natural de todos os domínios da nossa vida. Por isso não faz sentido limitá-lo ou perturbá-lo (ou, como ele diz, “proibir”). O seu pensamento nada tem de original em relação ao que hoje vemos por essa Europa fora. Apenas não disfarça. Original é que se diga “social-democrata”. Até os seus companheiros ideológicos europeus hão de estranhar.

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