Quando há cerca de dez anos tive a ideia de escrever um libreto, não o fiz com o objetivo de ser a primeira ópera a ser criada em Trás-os-Montes, não o fiz por ser de Vila Real, não o fiz por ser do interior do país. Fi-lo porque estava entediada, com uma rotina bem definida, porque os dias se encaixavam todos no sistema biométrico de uma empresa e eu queria voar. E, acredito, se vivesse em Lisboa, em Évora, no Porto, no Funchal ou em Miranda do Douro, ia ter igualmente essa mesma vontade.
Foi assim que nasceu a ideia da “Mátria”, aquela que viria a ser uma “ópera de gaveta” durante 10 anos, mas que subiu a palco em dezembro de 2021, com honras de ser a primeira ópera criada em Trás-os-Montes, ainda que isso, sinceramente, me diga muito pouco. O que realmente me diz é ter visto as quatro récitas em Vila Real e Bragança esgotadas, com público que maioritariamente nunca tinha ido assistir a uma ópera e no fim do espetáculo, esse mesmo público, confessar, entre risos, que afinal não adormeceu.
A criação, para mim, não tem geografia, não tem fronteiras, não tem pátria. A criação é algo maior do que tudo isso, muitíssimo maior do que qualquer ego que se queira apoderar dela e, consequentemente, da cultura. Há qualquer coisa indescritível no prazer de dar vida a personagens escritas em papel mas que trazem ao peito letras ritmadas pelo pulsar de um coração. E o coração está lá dentro, no interior. No mais profundo interior de um corpo que também pode ser um país, uma orquestra, ou um palco. O coração não se vê, ouve-se e sente-se. Mesmo que o peito se encha de ar, se queira mostrar ao mundo, é de dentro para fora que a vida acontece.
Por isso, para mim, escrever sobre a cultura no interior é acreditar no interior da cultura. É tentar colocar em palavras esse som ritmado do coração que faz com que uma ideia possa mobilizar cem pessoas, dez pessoas ou dar sentido à vida de uma pessoa. E já é tanto. É tentar que a beleza não tenha estereótipos, que não tenha crenças nem limites. Que as serras no interior do meu país sirvam apenas para ver mais alto, que os rios nos inundem de força e que a geografia seja o local onde nascem as raízes e de onde despontam as asas.
A cultura no interior do país precisa de mais atenção porque o interior da cultura precisa ser mais cuidado. E se realmente Portugal se interessa com o seu interior geográfico, então os portugueses merecem olhar para dentro, merecem que quem tem poder de o mostrar, como a imprensa, que o mostre: o que se faz, quem faz, e porque o faz. Não a procurar o lado pitoresco, mas por ter centelha. Não com condescendência, mas com rigor. Não pela localização, mas sim pelo profissionalismo.
cultura não tem nome de cidade, nem de artista. E que quem tem “poder de decisão” no interior do país olhe para dentro sem vergonha e sem desdém, que olhe com a beleza e a estratégia de quem desenha futuros, que não veja um quintal no lugar de um país, e que saiba que às vezes somos nós quem desenhamos um círculo em nosso redor, acreditando que não podemos saltar.
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