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26. Palavra da semana: língua

A língua do Dalai Lama tornou-se a mais falada do mundo, ultrapassando o inglês, o mandarim e o hindi. E ainda vai dar muito que falar

Até há poucos dias eu não sabia se o Dalai Lama ainda estava vivo. Nem sabia sequer se o Dalai Lama era o do filme de Scorsese ou o outro, o do filme de Bertolucci. Presença assídua em publicações nas redes sociais, com passarinhos a emoldurarem-lhe o rosto sorridente e beatífico e acompanhado de frases sobre bondade e quão errado é comermos animais, pelo menos enquanto estão vivos, o Dalai Lama é uma figura tão distante e enigmática quanto o Buda e tão vaga e vaporosa quanto o mítico fundador da Cientologia, o Dr. L. Ron Hubbard.

Por mim, o senhor Dalai Lama tanto podia estar vivo como já ter reencarnado numa trepadeira, numa avestruz ou num professor assistente do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. E para quem acredita na reencarnação pouco importará o transitório estado em que nos encontramos porque, mais cedo ou mais tarde, vimos cá parar outra vez. Porém, Tenzin Gyatso está vivo, embora provavelmente não na plena posse das suas faculdades mentais, como pudemos testemunhar nas imagens difundidas por todo o mundo que o mostraram a solicitar um linguado a um rapazinho.

Estávamos nós convencidos de que este tipo de comportamento se circunscrevia a sacristias de paróquias remotas da Beira Alta e vem agora a maior figura do budismo tibetano, não um herdeiro de um trono ou sacerdote eleito em colégio cardinalício, mas um bodisatva, destruir os nossos sonhos multiculturais? Non abbiate paura, amici mei. Formou-se espontaneamente uma brigada de especialistas e intérpretes da cultura tibetana que explicou os múltiplos significados, todos benignos, de mostrar aos outros o músculo mais potente do corpo humano e as virtudes analgésicas e curativas de um homem de oitenta anos ter a língua chupada por uma criança. No Ocidente já não é assim, mas em culturas ancestrais como a tibetana ou em algumas caves austríacas, ainda se respeitam os mais velhos.

Esta prática, a qual, segundo pude apurar, se designa por chupakki, é não só um sinal de reverência mas um veículo de transmissão de energias: a criança recebe, por via oral, milénios de sabedoria acumulada, a experiência de vidas anteriores, e o senhor Dalai Lama, bem, o senhor Dalai Lama, na sua infinita sapiência e bondade, lá saberá o que recebe. Não seremos nós, meros imortais que tivemos o azar de reencarnar em Portugal, a ousar a entrada na cabeça de um homem santo.

Tive pena de não ser um desses socorristas culturais que entraram de imediato em ação fazendo manobras de reabilitação antropológica e aplicando ao Dalai Lama uma máscara de relativismo cultural que lhe permitiu sobreviver aos primeiros dias de escândalo apenas com ligeiras mazelas. Gostaria de ter lembrado outras tradições e rituais iniciáticos como o sentokku ou tagasha, ainda hoje muito populares em comunidades nómadas das estepes e de criadores de iaques, ou de ter exposto a minha teoria de que o líder religioso do Tibete pode estar infetado com o fungo da série apocalíptica “The Last of Us”. Mas o mais importante foi conseguido: evitar que o Dalai Lama morresse pela língua, que se presta sempre a muitos equívocos.

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