Um filme de terror
O que temos é um filme de terror, cujo enredo vai sendo revelado nos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito sobre a TAP
Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD
O que temos é um filme de terror, cujo enredo vai sendo revelado nos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito sobre a TAP
Há alguns meses, nesta mesma coluna, publiquei um texto que intitulei “A novela da TAP”, expressão que se me afigurou especialmente adequada para ilustrar o comportamento político errático do governo socialista neste domínio, desde a assunção inicial de metade do capital social da empresa, mas mantendo o domínio de gestão nos acionistas privados, passando pela nacionalização com o argumento da pandemia, pela injeção de 3,2 mil milhões de euros, até ao anúncio da sua reprivatização, cujos moldes continuamos, meses passados, sem conhecer e a admissão, nesse contexto, da possibilidade de o erário público (leia-se, os contribuintes) não reaver a totalidade das verbas que ali injetou.
Em suma: um verdadeiro tratado da arte da (des)governação, uma demonstração cabal daquilo que pode suceder quando quem decide não faz a mais pequena ideia do que tem de fazer e de quais as reais consequências dos seus atos. Uma crítica que, abrangendo, naturalmente, todos quantos participaram nessas decisões, atinge, em particular, o primeiro-ministro, que teve nelas um envolvimento direto e decisivo.
Esta, era, porém, apenas a parte pública da história. Porque outra havia, escondida nas sombras dos bastidores e que agora vai, a pouco e pouco, emergindo à luz do dia. E, afinal, a novela não o era, verdadeiramente. Em vez disso, o que temos é um filme de terror, cujo enredo vai sendo revelado nos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito.
As audições iniciais, em particular a da presidente da comissão executiva da empresa (expressão que, com vantagem, deveria substituir a de CEO), já tinham sido muito reveladoras. Mas a que ontem teve lugar, com o presidente do conselho de administração, foi-o ainda mais. E não esqueçamos que estamos a falar de alguém que foi escolhido para o cargo por ser muito próximo do então ministro Pedro Nuno Santos.
O manancial de revelações (ou de confirmações) é de tal ordem que a escolha se torna difícil. Mas vou fazer um esforço de síntese.
O presidente do conselho de administração e a presidente da comissão executiva foram afastados, para mais com invocação de justa causa, por terem assinado um acordo de saída de uma administradora após validação do mesmo pelo acionista, Dito de outra forma: por mera conveniência político-partidária, numa tentativa de encontrar bodes expiatórios para os erros do Governo.
Por inação da tutela, os administradores não subscreveram contratos de gestão, que são legalmente obrigatórios, apesar de a situação de ilegalidade ter sido reportada por várias vezes.
Dois dos administradores não executivos, que se demitiram em 2021, ainda não foram substituídos, dificultando a tarefa de fiscalização da atuação da comissão executiva.
Por quatro vezes, o presidente do conselho de administração tentou ser recebido pelo ministro Pedro Nuno Santos, sem que este tenha encontrado na sua agenda tempo para o receber ou, sequer, para lhe dar uma resposta.
A interferência política do Governo na empresa era de tal ordem que até os comunicados de imprensa, em vez de serem aprovados pela comissão executiva ou pelo conselho de administração, tinham de obter a chancela dos ministérios de que dependia.
Mas, ficámos a saber, também, que o Governo não tem a mínima noção do rigor procedimental a que a sua atuação deve obedecer e que evidencia um total desrespeito pela Assembleia da República.
Decidir implica cumprir formalismos e manter registos. Não se despacha por sms. Não se decide o montante de uma indemnização por whatsapp. E os membros do Governo têm de manter um adequado distanciamento institucional face a quem deles funcionalmente dependa.
Por outro lado, é uma violação clara de regras democráticas básicas tentar condicionar um alto dirigente de uma empresa do Estado que é chamado ao Parlamento, promovendo a realização de um encontro prévio com membros de gabinetes ministeriais e deputados do grupo parlamentar que apoia o Executivo.
Já ouvi e li, vinda do Partido Socialista, a afirmação de que tais reuniões são normais. Posso dizer, baseado numa experiência parlamentar de vinte anos, que isso é, pura e simplesmente, falso. Trabalhos de articulação política com membros do Governo que vão à Assembleia da República são comuns (para não dizer que ocorrem sempre). Reuniões como aquela em que participou a presidente da comissão executiva, nunca vi, nem tive qualquer conhecimento que ocorressem, fosse qual fosse o partido (ou partidos) que estivesse no Governo.
Tudo isto é mau demais para ser verdade. Mas a trama do filme de terror arrisca-se a ser mais densa, porque a procissão (da comissão de inquérito) pode ir ainda no adro.
Neste contexto, partidos houve que, para fazerem prova de vida, logo correram a exigir a demissão de ministros. Não foi esse o caminho escolhido pelo PSD.
Essa é, de resto, a postura que, desde há muito, o partido vem assumindo. E bem, porque a composição do Governo é da exclusiva responsabilidade do primeiro-ministro, a ele devendo pedir-se contas pelas escolhas que faz ou pela recusa em dele afastar aqueles que já não têm condições para exercer o seu cargo.
Na TAP, António Costa falhou nas políticas e falhou nas pessoas. Em muitos outros domínios, também. A continuar assim, o tempo das consequências não poderá, senão, ser antecipado.
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