Opinião

Finlândia e Trump

Finlândia e Trump

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

Aparentemente, nada relaciona o facto de a Finlândia se ter tornado oficialmente membro da NATO e Trump ter assumido o estatuto de primeiro Presidente dos EUA a ser formalmente acusado pela justiça penal do seu país

O dia de ontem, terça-feira, ficou marcado por dois acontecimentos históricos. Por um lado, a Finlândia tornou-se, oficialmente, membro da NATO – o 31.º. Por outro, Donald Trump assumiu o estatuto, manifestamente indesejável, de ser o primeiro Presidente dos EUA formalmente acusado pela justiça penal do seu país.

Aparentemente, nada relaciona os dois eventos. Mas, se olharmos para os factos com maior atenção, é capaz, afinal, de haver um traço de ligação entre eles.

A adesão da Finlândia à Aliança Atlântica é, seguramente, uma das mais importantes consequências geopolíticas, a nível europeu, da agressão russa à Ucrânia.

Não por acaso, a situação em que um país pequeno condiciona a sua política externa – e, nalguns planos, até a interna – em função dos interesses de uma grande potência vizinha, potencialmente hostil, passou a ser identificada, no plano das relações internacionais, sob o conceito de “finlandização”.

No caso concreto da Finlândia, a aceitação desse “status quo” foi a condição essencial para a manutenção da sua independência no final da Segunda Guerra Mundial. E o preço a pagar foi elevado: a assinatura do Tratado com a URSS em 1948, impondo, na prática, um estatuto de neutralidade, a consequente não adesão à NATO e a recusa de receber apoios norte-americanos no quadro do Plano Marshall.

As prioridades de política externa (e de segurança) de um país são, naturalmente, consequência de uma leitura do seu próprio interesse nacional e dos desafios com que está confrontado. Nessa medida, são, em princípio, permanentes, não vogando ao sabor de flutuações conjunturais.

Dito de outra forma: tais prioridades só mudam se as circunstâncias (internas ou internacionais) se alterarem de forma substantiva. E foi precisamente o que aqui sucedeu, por força da postura, progressivamente mais ameaçadora, de Moscovo. Algo que levou Helsínquia a romper com a sua postura de sete décadas, compreendendo que, sendo-lhe impossível garantir, por si só, a sua segurança, acolher-se ao guarda-chuva protetor que o artigo 5.º do Tratado de Washington propicia (a célebre cláusula de assistência mútua em caso de agressão) era a única solução possível.

Passemos, então, a Donald Trump. A acusação que agora enfrenta prende-se com um alegado pagamento a uma atriz de filmes pornográficos, com o fito de evitar a publicitação de um caso que poderia ter consequências negativas na campanha que acabou por conduzi-lo à Casa Branca em 2017. Mas essa é, apenas, a ponta do iceberg, uma vez que outras investigações estão em curso sobre as manobras para adulterar os resultados das eleições de 2020, nomeadamente no Estado da Geórgia, sobre a tentativa de obstruir a proclamação oficial da vitória de Biden e o incitamento à insurreição em 6 de janeiro de 2021 ou sobre a manutenção na sua posse de documentos oficiais classificados.

Sem esquecer, evidentemente, as averiguações, que prosseguem, sobre os negócios e as contas da Trump Organization, empresa que, aliás, já foi condenada a pagar mais de um milhão e meio de dólares por fraude fiscal e a cujo antigo administrador financeiro foi aplicada pena de prisão.

Na fórmula de tomada de posse, o Presidente norte-americano jura, de forma solene, exercer fielmente o cargo e, com o melhor das suas capacidades, preservar, proteger e defender a Constituição. Tenho por seguro que nenhum dos seus antecessores – nem mesmo Nixon, a propósito do caso Watergate – violou, de forma tão dolosa, direta e extensa, esse compromisso.

O exercício de funções por parte de Donald Trump foi um desastre, para os Estados Unidos e para o mundo.

Internamente, a cartilha do “Make America Great Again” renegou, por inteiro, os valores do conservadorismo republicano tradicional e assentou, ao invés, numa mistura de autoritarismo pessoal, de populismo, de nacionalismo económico e de recusa de rejeição das teses da supremacia branca, afetando de forma dramática a coesão social do país.

Externamente, pôs em causa a relação com os seus tradicionais aliados, questionou a relevância da NATO, atacou a liberalização comercial e contribuiu para o agravamento da instabilidade, ao mesmo tempo que evidenciava uma crescente tolerância – para não dizer pior – relativamente a regimes ditatoriais, com destaque para o de Putin e o de Kim Jong-Un.

Nalgumas daquelas tiradas eivadas de narcisismo que tanto o caracterizam, Trump chegou a firmar que, se ele tivesse permanecido Presidente, a invasão da Ucrânia nunca teria acontecido e que, quando voltar ao cargo, resolverá a guerra num dia, porque sabe exactamente o que deve ser feito. Ora, julgo que é precisamente o inverso.

Como se diz no desporto, uma equipa só joga aquilo que a outra deixa jogar. Nessa perspetiva, tenho para mim que uma das causas que terá conduzido à guerra foi a passividade, a fraqueza e a cedência sistemática que caracterizaram a sua relação com Putin. E isto para não lhe chamar cumplicidade, recordando as relações estreitas entre colaboradores próximos de Trump e altos funcionários russos, no contexto da política de interferência na campanha eleitoral, com o intuito de minar a candidatura de Hillary Clinton e de beneficiar a sua.

Tudo isto teve, a meu ver, uma consequência: contribuiu para o reforço das ilegítimas e ilegais pretensões expansionistas de Putin, que vislumbrou uma oportunidade naquilo que analisou como uma progressiva e debilitante divisão do aparelho político e da sociedade civil norte-americana.

E chegamos ao ponto que queria sublinhar. Tivesse Trump sido fiel às obrigações e responsabilidades que assumiu, e é bem possível que a invasão da Ucrânia não ocorresse e que, consequentemente, a Finlândia não passasse a encarar a adesão à NATO como um imperativo absoluto. Tivesse ele sido digno do seu cargo e, seguramente, não estaria em maus lençóis no plano judicial. Deus nos livre, portanto, que tenha sucesso nas eleições de 2024!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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